quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

‘Indulto não é prêmio ao criminoso’, diz Cármen ao suspender decreto de Temer



A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e a ministra Cármen Lúcia, em sessão do STF - Ailton de Freitas / Ailton de Freitas/Agência O Globo/13-12-2017

Carolina Brígido - O Globo



A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu os efeitos do decreto publicado pelo presidente Michel Temer com regras mais brandas para a concessão do indulto de Natal a presos condenados. A decisão foi tomada diante de um pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, apresentado à Corte na última quarta-feira contra a medida de Temer. A procuradora tinha pedido urgência da liminar e foi atendida pela ministra.

Na decisão, Cármen Lúcia afirmou que as regras do decreto “dão concretude à situação de impunidade, em especial aos denominados ‘crimes de colarinho branco’, desguarnecendo o erário e a sociedade de providências legais voltadas a coibir a atuação deletéria de sujeitos descompromissados com valores éticos e com o interesse público garantidores pela integridade do sistema jurídico”. Para ela, “as circunstâncias que conduziram à edição do decreto, numa primeira análise, demonstram aparente desvio de finalidade”.

A ministra também afirmou que o decreto não cumpre a finalidade do indulto, pois “esvazia-se a jurisdição penal, nega-se o prosseguimento e finalização de ações penais em curso, privilegia-se situações de benefícios sobre outros antes concedidas a diluir o processo penal, nega-se, enfim, a natureza humanitária do indulto, convertendo-o em benemerência sem causa e, portanto, sem fundamento jurídico válido”.

Na decisão, a ministra explicou que o indulto é uma medida humanitária, e não um meio para favorecer a impunidade. “Indulto não é nem pode ser instrumento de impunidade. É providência garantidora, num sistema constitucional e legal em que a execução da pena definida aos condenados seja a regra, possa-se, em situações específicas, excepcionais e não demolidoras do processo penal, permitir-se a extinção da pena pela superveniência de medida humanitária”, escreveu.

Cármen Lúcia esclareceu que, pelo indulto, o criminoso ganha “uma nova chance de superar seu erro”. Segundo ela, “indulto não é prêmio ao criminoso, nem tolerância ao crime”. A ministra afirmou que, se a legislação não for cumprida à risca, o indulto se transforma em “indolência com o crime e insensibilidade com a apreensão social, que crê no direito de uma sociedade justa e na qual o erro é punido e o direito respeitado”. Ela concluiu dizendo que indulto fora da finalidade estabelecida na lei “é arbítrio”.

A ação foi sorteada para a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que poderá liberar o caso para o julgamento em plenário a partir de fevereiro, quando terminar o recesso do judiciário. Segundo a presidente do STF, se a decisão dela for revertida em plenário, não haverá prejuízo aos presos, que poderão ser beneficiados pelo indulto nas regras estabelecidas por Temer depois da decisão do tribunal.


A procuradora-geral da República, Raquel Dodge - Jorge William/Agência O Globo



DODGE: DECRETO FERE CONSTITUIÇÃO

Na ação, Dodge considerou que Temer violou a Constituição ao permitir perdão de multas e penas patrimoniais — e não somente da pena de prisão —, ao viabilizar a paralisação de processos e recursos em andamento e ao extinguir a separação entre os poderes, na medida em que “subordinou” o Judiciário aos efeitos do ato presidencial. O indulto é o perdão total ao crime cometido pelo réu, sem necessidade de cumprimento de nenhuma pena restante.

A procuradora-geral chama o ato do presidente de “arbitrário”, “inconstitucional” e “indiscriminado”, e afirma que ele favorece a impunidade, beneficia condenados por crimes de corrupção e é inválido sob a ótica da lei.

Por 15 anos, só foi colocado em liberdade pelo decreto presidencial quem tivesse cumprido um terço de uma pena máxima de 12 anos, no caso de crimes sem violência, onde se encaixa corrupção e lavagem de dinheiro. Nos últimos dois anos, essa tradição foi quebrada, levando o comando da Lava-Jato a questionar a constitucionalidade da decisão do presidente.

Em 2016, veio a primeira mudança importante: o tempo de cumprimento da pena baixou de um terço para um quarto. Este ano, o tempo de prisão foi reduzido a um quinto, independentemente do tempo total da pena a ser cumprida. A idade de benefício a idosos, que era acima de 70 anos, agora pode ser igual ou maior que 70. Antes, apenas quem tinha filho até 14 anos podia ser beneficiado. Agora, também serve ao condenado que tem netos, caso fique provado que dependam do apenado.

“Não é dado ao presidente da República extinguir penas indiscriminadamente, como se seu poder não tivesse limites: e o limite do seu poder, no caso de indulto, é o livre exercício da função penal pelo Poder Judiciário, encarregado de aplicar a lei ao caso concreto e, assim, produzir os efeitos esperados do Direito Penal: punir quem cometeu o crime, fazê-lo reparar o dano, inibir práticas semelhantes pelo condenado e por outrem, reabilitar o infrator perante a sociedade”, escreveu a procuradora-geral na ação.

Segundo Dodge, o decreto de Temer se destina a “claramente” favorecer a impunidade, “dispensando do cumprimento da sentença judicial justamente os condenados por crimes que apresentam um alto grau de dano social, com consequências morais e sociais inestimáveis, como é o caso dos crimes de corrupção, de lavagem de dinheiro e outros correlatos”.


Para ela, a impunidade se estenderá à Lava-Jato e a outras operações que se destinaram ao combate à corrupção: “Essas investigações desbarataram organizações criminosas que assaltaram os cofres públicos, desviaram valores da ordem de bilhões de reais e demandaram investimentos tecnológicos e de recursos humanos de grande vulto por parte do Estado brasileiro para se alcançar os resultados obtidos”, afirmou.

Assim que o decreto foi publicado, Dodge começou a sofrer pressão dentro do Ministério Público para entrar com uma ação contra a medida no STF. A procuradora-geral relutou. Não queria se indispor com o presidente. Ao fim, acabou cedendo à pressão.

O decreto de indulto natalino foi publicado na última sexta-feira. Além de facilitar o perdão aos criminosos, o novo decreto presidencial também beneficia condenados que, além da pena de prisão, têm que pagar multas.

O texto prevê que o indulto tem efeito sobre as sanções pecuniárias, contrariando uma definição expressa da norma anterior, publicada em 2016, segundo a qual a pena de multa aplicada “não é alcançada pelo indulto”. O benefício é voltado a sentenciados que cumprem a pena em regime aberto ou estejam em livramento condicional.

Para Cármen Lúcia, a multa não pode ser alvo de indulto. “Multa, pena pecuniária ou valor aplicado por outra causa não provoca situação de desumanidade ou digno de benignidade, por ser atuação judicial que beneficia a sociedade sem agravar, em demasia ou excessivo agravo, aquele que a tenha merecido por decisão judicial que a tanto tenha chegado em razão dos ilícitos julgados”, escreveu a ministra na decisão.

As regras do indulto são publicadas todo ano pelo presidente da República e, com base nelas, as defesas dos condenados pleiteiam na Justiça o benefício. Muitos políticos vêm conseguindo se beneficiar do indulto. A partir do decreto editado em dezembro de 2015 pela ex-presidente Dilma Rousseff, ex-deputados federais condenados no mensalão, como João Paulo Cunha (PT-SP), Roberto Jefferson (PTB-RJ) e Bispo Rodrigues (PR-RJ), tiveram o perdão concedido pelo STF.

A ação da procuradora-geral Raquel Dodge foi elogiada pelo ex-procurador-geral Rodrigo Janot. Em sua conta no Twitter, Janot afirmou que a ação ocorre “em boa hora e no ponto”. Ele classificou o decreto como “absurdo” e disse que a medida é “mais um movimento do governo contra a Lava-Jato”.

Janot e Dodge são de grupos opostos dentro da PGR: na escolha do seu sucessor, ele apoio Nicolao Dino, que foi vice-procurador durante sua gestão. Dino foi o mais votado na eleição interna, mas Temer preferiu indicar Dodge, que ficou em segundo lugar.

MINISTRO DA JUSTIÇA DEFENDE DECRETO

De acordo com o ministro da Justiça, Torquato Jardim, o novo decreto se deu por “posição política” do presidente Michel Temer. Segundo ele, o presidente “entendeu que era o momento político adequado para uma visão mais liberal da questão do indulto”.

Nesta quinta-feira, Torquato Jardim afirmou que Temer não recuaria do decreto – a não ser que houvesse uma decisão do STF determinando a suspensão da medida.

— Todo indulto é um ato do Executivo que suspende uma decisão do Judiciário. O indulto é uma exceção expressa na Constituição e, por isso, não fere a harmonia entre os poderes — afirmou o ministro da Justiça ao GLOBO.