O Estado de S.Paulo
As forças do acaso e a ação surpreendente do homem influenciam a evolução da vida na Terra. Fatos importantes, como a ida do homem à Lua, o advento do transistor e o espetacular aumento da longevidade nas últimas décadas (um aumento de 45,5 anos para 75,5 anos no Brasil, em apenas 75 anos!), ilustram os esforços de pesquisadores, empreendedores e a determinação de nações.
A queda da taxa de mortalidade infantil e o aumento da longevidade da população se devem a descobertas científicas em diversas áreas que resultaram em moradias funcionais, oferta de água tratada, alimentos, energia e transporte em abundância, vacinas e antibióticos que favorecem a batalha contra microrganismos patogênicos, etc.
O Brasil não ficou à margem. Nosso Carlos Chagas é ainda hoje um dos únicos cientistas que descreveu o ciclo completo de uma doença infecciosa, a doença de Chagas. Ele identificou o patógeno causador (Trypanosoma cruzi, um protozoário), o vetor (Triatominae, o “barbeiro”), o hospedeiro (o homem), as manifestações, bem como a maneira como a doença se propaga e os meios necessários à sua prevenção. Carlos Chagas não ganhou o Prêmio Nobel, e isso é irrelevante, pois suas descobertas propiciaram o desenvolvimento de políticas públicas que minimizaram o impacto da doença na população.
Também Santos Dumont, outro inventor brasileiro, contribuiu para desenvolver balões dirigíveis e até hoje discutimos fervorosamente se a primazia do voo em avião se deve ao brasileiro ou aos americanos irmãos Wright. A pergunta, entretanto, é por que a partir deste fato nos Estados Unidos se originaram centenas de empresas que hoje constituem o mais poderoso complexo da indústria aeroespacial mundial e aqui somente em 1969 foi fundada a Embraer, um exitoso, mas excepcional exemplo de sucesso de pesquisa e desenvolvimento.
Os reiterados aumentos de produtividade no agronegócio, a despeito de enormes deficiências de logística no País, de dimensões continentais, fizeram com que em cinco décadas passássemos de importadores para o segundo maior exportador de alimentos do mundo, com projeção de sermos o primeiro na próxima década. Por que, a despeito dessas e de outras realizações, a capacidade inventiva do brasileiro de modo amplo tem se transformado em geração de riquezas e bem-estar social que estão muito aquém daqueles gerados em outros países?
As respostas devem ser buscadas no contexto da chamada era das Sociedades do Conhecimento, que se caracterizam por modelos de organização em que a criação de conhecimento tem papel fundamental na produção de riqueza e na qualidade de vida da população. A capacidade de criar conhecimentos requer educação universal de qualidade e universidades de pesquisa competitivas. São necessários, também, agentes que transformem conhecimento em processos e produtos por meio de pesquisa aplicada e desenvolvimento, especialmente nas empresas, num ambiente de inovação e de negócios favorável, acompanhado de investimentos públicos e privados perenes e previsíveis.
Não há mágica e definição de prioridades e liderança são ingredientes para a construção desses ambientes. São Paulo, por exemplo, é o único Estado que há mais de cinco décadas dirige 13% dos recursos obtidos pelo ICMS para criar e manter universidades públicas de qualidade, escolas técnicas (Fatecs) e uma agência de fomento à pesquisa (Fapesp). Esta foi e é uma decisão da sociedade paulista, e não deste ou daquele governante. Os resultados são claros: com cerca de 20% da população do País, os paulistas respondem por quase metade da produção científica e 1/3 de todas as riquezas produzidas no Brasil. Imaginem se o mesmo porcentual dos recursos de ICMS dos demais Estados fosse destinado ao ensino superior, à formação técnica e ao desenvolvimento tecnológico, décadas após décadas. Onde estaríamos?
O que se faz em São Paulo é necessário, mas não suficiente.
Hoje os problemas são mais complexos e exigem uma matriz de ciência e tecnologia mais sofisticada para aproximar a base de conhecimento científico da produção tecnológica. Existe um grande desafio para interconectar áreas de conhecimento e promover trocas de informações e produtos entre países e gerar ambientes competitivos necessários ao desenvolvimento econômico. O chamado custo Brasil, verdadeira trava que impede a inovação tecnológica, se traduz em ambiente de negócio desfavorável em razão da burocracia, da carga tributária mal distribuída e da estrutura fiscal complexa.
Por que isso importa? Perdem-se oportunidades. Basta lembrar que a frustração para pegar um taxi num final de tarde chuvoso em Paris desencadeou uma revolução no transporte urbano quando dois empreendedores tiveram uma ideia e desenvolveram uma plataforma digital para aproximar taxis e passageiros por um toque, bastando que ambos dispusessem de smartphones. A mesma estratégia foi logo utilizada para conectar inquilinos e donos de imóveis, e uma segunda classe de empresas foi criada e a pioneira já é a segunda maior rede de hotéis mundial sem possuir um único quarto.
Somos uma das dez maiores economias do planeta e a que menos investe em pesquisa e desenvolvimento. Investimos apenas 1,2% do valor de todas as riquezas produzidas no País, enquanto economias desenvolvidas investem cerca de 2,5% e as que aspiram a chegar lá rapidamente, como Coreia do Sul e Israel, investem de 3,5% até mais de 4,0% de tudo o que produzem nesta atividade.
Os Carlos Chagas e Dumonts aparecerão e serão reverenciados, mas não deveriam ser estrelas isoladas. Quantos Ubers e Airbnbs estamos deixando de criar? Como alocar recursos públicos com inteligência e como priorizar o que cortar em épocas de crise para não comprometer o futuro?
Escolhas, difíceis escolhas.
*Professor da Faculdade de Medicina da USP, pesquisador do Incor, é membro da Academia Brasileira de Ciências e pró-reitor de pesquisa da USP