domingo, 31 de dezembro de 2017

‘Tem de ficar claro: deu para um grupo, vai faltar a outros’, diz secretária do Tesouro

Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli, O Estado de S.Paulo

 Primeira mulher a comandar o Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi diz que o Brasil tem um encontro marcado com a discussão sobre as despesas obrigatórias, como o pagamento de aposentadorias, pensões e salários do funcionalismo. Com fama de durona apesar do tom sempre baixo e pousado da voz, Ana Paula diz que é preciso ficar claro para o Congresso e para a sociedade que dar mais recursos para reajustes de servidores, por exemplo, significa reduzir as verbas destinadas a políticas que atingiriam a população como um todo, inclusive em áreas essenciais como saúde, educação e assistência social. A seguir, os principais trechos:
Vescovi
Sem saída. País será forçado a rever despesas, diz Ana Paula Foto: José Cruz/Agência Brasil
As medidas para 2018 não foram aprovadas e a reforma da Previdência foi adiada. Vai ter que apertar mais o cinto?
Será inevitável rediscutir despesas obrigatórias, vinculações de receitas, a rigidez orçamentária no Brasil. Seja qual for o governo que vier, por algum tempo o Brasil enfrentará essa agenda e terá que fazer escolhas que são difíceis, mas necessárias. O excesso de rigidez do Orçamento, de indexação de despesas obrigatórias e o impacto da tendência demográfica sobre as despesas estão levando à baixa qualidade na alocação dos recursos públicos. É isso que precisará ser enfrentado.

Medidas para reduzir a rigidez orçamentária não foram ainda tomadas?
(A questão) Não está sendo endereçada. O exemplo do Orçamento de 2018 poderá ser bastante pedagógico. Temos uma discussão do reajuste dos servidores. A postergação poderia reduzir despesas obrigatórias em R$ 6 bilhões em 2018. Sem a postergação, vai ficar um espaço mais restrito para despesas que são absolutamente importantes. Estamos falando em trocar um benefício para um grupo já muito privilegiado por mais recursos para o Fundo Nacional de Assistência Social, por exemplo. Teremos menos investimento, menos dinheiro para conservação de estradas que têm excesso de acidentes, com ônus para o sistema de saúde. Essa troca tem que ficar mais clara para a sociedade. Talvez teremos que dar R$ 6 bilhões para um grupo bastante privilegiado e restrito, servidores que têm estabilidade no emprego, altas remunerações. Estamos dando para esse grupo e vai faltar para outras políticas.

Como a senhora vê a pressão do funcionalismo sobre medidas do governo?
É uma pressão muito grande, mas não podemos generalizar. Em primeiro plano, ela vem na defesa de um interesse específico, corporativista. De forma alguma faz um bom debate em relação aos interesses da sociedade. Temos uma convivência ainda com milhões de desempregados.

Como se vence essa batalha?
Mostrando os dados e como se alia ao interesse coletivo. Me espanta que os partidos que foram defender a manutenção dos reajustes são de esquerda e que empunham a bandeira da população carente, mais pobre. Então, foi lá defender o interesse do grupo mais privilegiado dos trabalhadores. Isso tem que ficar claro. Deu para um grupo, vai faltar para outros. 

A necessidade de ajuste é um discurso no Congresso, mas na hora eles não votam. Por quê?
Eu acredito que isso cresce em ondas. É um processo de convencimento. Hoje, já temos uma compreensão muito maior do problema do que há um ano e meio de que temos um problema fiscal grave no País. O que espero que fará grande diferença é que, na última eleição, foi um discussão quase inexistente. Quem tentava fazer era negado. No ciclo eleitoral do ano que vem, essa discussão fiscal não faltará.

Mas não podem aparecer soluções aventureiras ou até de negação?
Tenho dúvidas se a população vai aceitar simplesmente alguém que fale não tem problema. Os problemas estão aí. Não tem dinheiro nos Estados para pagar os salários atrasados, o serviço público de saúde padecendo. Não é só o Rio de Janeiro. O cidadão não tem a percepção de que está tudo resolvido, mas sim de que há um grande problema nas contas públicas.

Está tão difícil passar no Congresso medidas de ajuste até mesmo de menor alcance.
Eu acredito que, dado o tamanho da restrição que estamos vivendo, essa discussão vai crescer e encorpar.

É um debate para 2018?
Sim, porque temos a regra de ouro. É preciso discutir. É uma das restrições fortes.

O descumprimento da regra de ouro impõe penalidades ao presidente, ministros e secretários, que serão responsabilizados.
No limite, pressupõe que teremos falta de fontes para financiar déficit que não seja investimento. A Constituição diz que a emissão de dívida do Tesouro não pode ser usada para pagar despesa corrente, como a Previdência. Isso tudo vai tornando muito claro como é inexorável enfrentarmos. A Previdência tem hoje um quadro de déficit indo para R$ 200 bilhões, mas o mais grave é que piora por uma questão demográfica. São múltiplas restrições. Elas não passam necessariamente só pelas regras. Elas são reais sobre o financiamento do déficit brasileiro. E acredito que vai crescer. Temos um encontro marcado com a discussão da rigidez orçamentária e do excesso de despesas obrigatórias.
Para 2018, o governo tenta resolver com a devolução dos recursos pelo BNDES. E 2019, como fica? É uma crise contratada para o próximo presidente?
É uma crise contratada. É uma pauta suprapartidária. É uma discussão que terá que ser feita no ano que vem.

Já conseguiram projetar o rombo da regra de 2019? É maior do que o projetado para 2018?
É muito similar. Vamos esperar o de 2017 para ver se modelo funcionou bem para termos segurança e mostrarmos já 2019.

O Brasil tem três regras fiscais: a meta, o teto e a regra de ouro. O que acontece se uma perna desse tripé fiscal cair?
Descumprindo a regra de ouro, imediatamente nós temos que suspender o financiamento de despesas correntes. Do teto, temos vedações constitucionais de um grupo de despesas. A regra do ouro talvez necessite passar por um aperfeiçoamento. Seria muito mais interessante ela ter esses acionamentos automáticos do que levar um crime de responsabilidade.

Como seriam?
Um pouco do que foi feito com o teto. Se levou ao descumprimento, seria importante a vedação de algum tipo de despesa, financiamento ou desvinculação de receita para que a gente pudesse lidar.

Há uma proposta já pronta no governo?
Estamos levando essa discussão para vários atores que têm se interessado. Tendo mais segurança dos cenários que vamos enfrentar nos anos subsequentes, vamos aprofundar um pouco na proposição de algumas medidas. Mas no momento não existe uma proposta.

O governo perdeu as medidas de ajuste e tudo indica vai perder o projeto que reonera a folha de pagamento das empresas. Como reagir aos reveses?
Eu vi uma nota de que a Câmara está fazendo um movimento de lideranças políticas no sentido de rever as despesas obrigatórias. Fazer uma proposta legislativa tangenciando essa questão de conter as despesas obrigatórias.

Quais despesas atacar?
Criação de programas que vinculam receitas, excesso de fundos públicos vinculados à receita, a existência de um superávit de exercícios anteriores “absolutamente” vinculado e que poderia ser extremamente importante para abater a dívida pública. Discutir a vinculação de receitas a despesas específicas. A dificuldade que se tem de ter clareza sobre a despesa de pessoal em todos os poderes e entes subnacionais.

Isso chegou a ser discutido no governo?
Não. Isso é uma questão de iniciativa e protagonismo dentro do Congresso. Mas estamos à disposição para discutir e oferecer números.

O teto de gastos já está em xeque. Ele será sustentável?
A regra do teto é simples e estimula essa discussão alocativa. Também traz um acionamento automático de medidas caso não seja cumprido, vai vedar novos concursos, novos reajustes de salários, crescimento de despesas obrigatórias acima da inflação. Vai trazer mais força ainda para essa discussão. Com a expectativa de termos um bom crescimento em 2018 e com alento do campo das receitas, isso não virá em benefício das despesas porque a regra do teto está valendo. Qualquer ganho de receita virá em benefício do resultado fiscal.

Já há uma discussão que o teto pode ser revisto. O que acontece?
Acreditamos que essa discussão não se sustenta. O teto é a construção que nós temos para sinalizarmos aonde o Brasil vai chegar em termos de endividamento público. Ainda temos uma dívida pública crescente e que deverá crescer por algum tempo até estabilizar. Se nós perdemos essa sinalização, os financiadores começam a cobrar um prêmio de risco [valor adicional para comprar títulos públicos]. E aí, há uma deterioração natural da economia, crescimento e geração do emprego.

A sra. tem fama de ser uma secretária dura.
É? Nossa...

Inclusive nos Estados. Mas a sra. perdeu algumas batalhas, cedendo em pontos do ajuste fiscal, e ganhou outras. Como a sra. faz esse balanço?
Não vejo a relação de perdas e ganhos, vejo uma relação de avanços. Nós avançamos até o limite, sempre mantivemos diálogo aberto com todos os Estados, sempre usamos de muita transparência e muita firmeza. Por isso às vezes isso se confunde com dureza. A gente conseguiu transitar por essa fase difícil da crise dentro dos nossos limites. No campo do ajuste fiscal federal, também acho que nós avançamos muito na principal ferramenta que temos hoje, que é a transparência. Minha impressão, e gostaria de ver isso confirmado pelos agentes externos, é que o Tesouro recuperou a confiança na sua condução da execução fiscal e financeira que nos cabe.