domingo, 31 de dezembro de 2017

"Ano estranho, com jeito esquisito", por Mary Zaidan

Com Blog do Noblat - O Globo


2018, Ano Novo (Foto: Pixabay)
Bom para muitos, ruim para alguns, mais ou menos para outros tantos. Com diferenças aqui e ali é assim que os anos terminam.  Incorporando adjetivos menos usuais, o ano de 2017 acaba entre o estranho e o esquisito.
Uma mistura bizarra de histórias inacreditáveis que nem o melhor ficcionista criaria com uma improvável recuperação econômica de um país destroçado por mais de uma década de desgoverno e corrupção deslavada. Temperada com irracionalidade e ódio, por descrença e apatia.
Por um lado, assistimos à repetição do jogo maniqueísta de esquerda versus direita, encarnado na disputa antecipada e ilegal entre o ex Lula e o deputado Jair Bolsonaro, e no bate-boca cada vez mais agressivo nas redes sociais. Por outro, presenciamos o ineditismo de um presidente da República ser denunciado por corrupção e perdoado, por duas vezes, por parlamentares facilmente aliciáveis. 
A delação premiadíssima e a gravação que colocou Michel Temer nas cordas chegou a valer como perdão total aos crimes dos irmãos Batista, donos do império JBS, uma das empresas aquinhoadas com crédito generoso do BNDES nos governos Lula e Dilma. Mas as bases do acordo feito pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, cujo auxiliar, Marcelo Miller, teria agido em prol da JBS, ruíram, jogando os Batista na cadeia, onde, longe dos iates, suítes de luxo e champanhe, eles verão 2018 começar.
Uma reviravolta digna dos melhores thrillers.
As denúncias e todo o esforço que Temer fez para se livrar delas atrasaram o calendário de reformas que o peemedebista queria deixar como legado. Adiou a imprescindível reforma da Previdência, que agora só será debatida depois do Carnaval e dificilmente votada em ano eleitoral, e colou nele impopularidade recorde.
Temer, escolhido por Lula para ser vice de Dilma Rousseff e acusado de golpista pelo petismo que usufruiu por anos da maioria peemedebista que ele garantia, responde por boa parte das singularidades e esquisitices do ano.
Com apenas 3% de aprovação popular conseguiu modernizar as leis trabalhistas que não se mexiam desde antes dos meados do século passado, limitar o teto de gastos e segurar drasticamente o déficit público alimentado por sua antecessora. A taxa de juros caiu para 7%, a menor desde 1986, e a inflação para menos de 3%. Em resumo: revirou um país que amargou dois anos de uma recessão brutal.
Seu governo é responsável ainda pela maior e mais profunda reforma do ensino médio, que perdia alunos e densidade ano a ano, e pela recente base curricular comum para a educação básica. Além de promover alterações importantes no Sistema Único de Saúde, a última delas, na quinta-feira, quando quebrou o gesso dos estados e municípios ao desindexar os recursos repassados pelo SUS.
Ao mesmo tempo, Temer deu guarita a gente da pior espécie. Fez vistas grossas ou protegeu comparsas enrolados com a Justiça e, a poucos dias do fim do ano, afundou-se de vez na lama ao tentar emplacar um indulto de Natal infame, libertando condenados após o cumprimento de apenas 20% da pena.
Foi impedido pela liminar da presidente da Suprema Corte, Cármen Lúcia, acolhendo a ação apresentada por Raquel Dodge, procuradora-geral indicada por ele, da qual muitos justiceiros com e sem toga suspeitavam.
A Justiça também proveu o país de estranhezas. Magistrados do Supremo abusaram de decisões monocráticas, de impropérios nas falas e incongruências. Em alguns casos, como os envolvendo foro privilegiado, prisão preventiva de parlamentares e condenação em segunda instância, criando mais dúvidas do que soluções jurídicas.
Para além da política e da economia, 2017 foi um ano de exacerbação moralista e de incremento ao ódio racial.
Com as eleições no Alabama, os Estados Unidos começaram a dar lições ao racista Donald Trump. Na Europa, a Alemanha, a mesma que provocou as duas grandes guerras pelo supremacismo ariano, bateu recordes mundiais de abrigo a refugiados de todos os cantos do planeta. Por aqui, não foram poucas as reações aos que tentaram criminalizar as artes e adicionar maldade à livre manifestação de ideias.
Fatos sensacionais a embalar um ano, que, embora recheado de boas notícias, será lembrado como ruim. Quando muito como estranho, esquisito.
Que venha o próximo. Feliz 2018!