Vinícius Sassine - O Globo
Escolhida para conduzir a Procuradoria-Geral da República (PGR) sob intensa desconfiança, num momento em que o presidente Michel Temer mexia as peças no tabuleiro de forma a se livrar das investigações por corrupção, Raquel Dodge passou a contestar atos de governo que a indicou e fez andar medidas que atingiram o entorno mais próximo do chefe do Executivo, repleto de alvos da Lava-Jato.
Determinados atos de Dodge, há 105 dias no cargo, vêm quebrando a resistência no grupo de seu antecessor, Rodrigo Janot — as duas alas se opõem na PGR. Esse processo, no entanto, não é linear nem automático. Quando assumiu o cargo, Dodge encontrou investigações engatilhadas e com potencial para gerar novas ações da Lava-Jato, segundo fontes ouvidas pela reportagem. A procuradora-geral vem adotando postura de maior cautela, discrição e contrapesos no instrumento símbolo da operação, a delação premiada.
O duro texto da ação direta de inconstitucionalidade que pediu a suspensão de parte do decreto presidencial do indulto a condenados presos, com decisão favorável da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, serviu para simbolizar a posição que a procuradora-geral vem adotando em relação aos atos mais controversos do governo Temer.
A ação foi protocolada no STF na última quarta-feira e chamou o decreto do presidente de "arbitrário", "inconstitucional" e "indiscriminado", com favorecimento à impunidade, benefício a condenados por crimes de corrupção e invalidez sob a ótica da lei.
O decreto com um indulto de Natal mais benevolente mobilizou fortes reações contrárias de procuradores da República que trabalham no combate à corrupção, em especial os que atuam ou atuaram em alguma frente da Lava-Jato. Dentro da PGR sob Dodge, não foi diferente. Nos dias que se sucederam à edição do decreto, a procuradora-geral foi auxiliada por integrantes da Secretaria de Função Penal Originária no STF na elaboração da ação de inconstitucionalidade.
Essa secretaria foi criada na estrutura da PGR, por iniciativa de Dodge, para abarcar as investigações da Lava-Jato e as que envolvem autoridades com foro privilegiado. É comandada por Raquel Branquinho, que ajudou Dodge na ação contra o indulto.
O entendimento na PGR, naquele momento, era que o caso demandava urgência, uma vez que eventuais beneficiados com o indulto poderiam, depois, alegar boa-fé na busca pelo benefício, dificultando uma reversão do perdão da pena. Segundo o entorno da procuradora-geral, Dodge partiu do princípio de que Temer extrapolou os limites impostos ao cargo de presidente e de que o indulto, naquelas condições, não se limitava a um gesto humanitário.
A ação gerou um primeiro gesto público de aprovação de Janot à sua sucessora. "Em boa hora e no ponto, a PGR Raquel Dodge propôs ação de inconstitucionalidade contra o absurdo decreto baixado pelo presidente Temer, que indulta criminosos de todo o tipo, especialmente corruptos", escreveu o ex-procurador-geral em seu Twitter. Antigos auxiliares de Janot na PGR dizem que a posição de Dodge sobre o caso foi importante para demonstrar independência e para soltar as amarras impostas pelo cargo e pelas condições em que assumiu a procuradoria.
Dodge também teve êxito na ofensiva contra outro ato do governo Temer bastante criticado pelos mais diferentes setores: a portaria do Ministério do Trabalho que relaxou as condições de fiscalização e repressão ao trabalho escravo. Na ocasião, Dodge optou por não acionar o STF, mas recomendou ao ministério a anulação da portaria.
Em pelo menos duas ocasiões, o então ministro, Ronaldo Nogueira, buscou Dodge para defender a portaria. A procuradora-geral insistiu na revogação nos encontros. A suspensão ocorreu com uma liminar da ministra do STF Rosa Weber, em ação movida pela Rede. Na última sexta-feira, nova portaria do ministério restabeleceu condições necessárias ao combate ao trabalho escravo.
A gestão de Dodge também se opôs, nestes primeiros cem dias, a aspectos de dois temas caros ao governo Temer. A procuradora-geral entrou com ação direta de inconstitucionalidade no STF contra a veiculação de propaganda a favor da reforma da Previdência, que usou dotação orçamentária suplementar de R$ 99,3 milhões. E, no campo dos direitos indígenas, a PGR se opõe à tese do marco temporal de 1988, ano da Constituição Federal, para a demarcação de terras indígenas.
Um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), aprovado por Temer, encampou uma demanda antiga da bancada ruralista. Estabelece que, para reconhecimento de área indígena, os índios deveriam estar presentes na área quando a Constituição foi promulgada, em 1988, ignorando saídas forçadas de comunidades tradicionais e posteriores retornos a essas terras.
Na Lava-Jato, Dodge adotou medidas contra o entorno de Temer, como a denúncia contra o ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA) e o deputado Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA); o parecer contrário à lei que resultou em foro privilegiado a Moreira Franco, colocado no cargo de ministro da Secretaria-Geral da Presidência; e no reforço a uma denúncia de Janot contra o senador Romero Jucá (PMDB-RR). Dodge também defendeu no STF uma tese cara à Lava-Jato: a prisão após condenação em segunda instância.
Apesar deses atos, uma única operação da Lava-Jato foi autorizada pelo STF até agora a partir de um pedido da procuradora-geral. A Polícia Federal (PF) cumpriu quatro mandados de busca e apreensão relacionados ao "bunker" dos R$ 51 milhões de Geddel — inclusive no apartamento funcional e no gabinete do irmão dele, Lúcio. Até agora, também, não veio a público uma delação premiada que tenha sido assinada na gestão da procuradora-geral.
Pelo menos uma colaboração discutida pela equipe de Dodge já teria sido assinada e homologada pelo STF, mas está sob sigilo.
A equipe de procuradores que cuidam exclusivamente da Lava-Jato foi reduzida na gestão de Dodge. Agora, por uma iniciativa que partiu diretamente dela, quatro procuradores foram escolhidos para reforçar a equipe por meio de um processo seletivo interno. Escolher um integrante do grupo da Lava-Jato na PGR por edital não tem precedentes. Os procuradores eram alocados por afinidades e confiança. O procedimento foi adotado para garantir a impessoalidade, segundo Dodge manifestou a pessoas de seu entorno.
VEJA COMO FOI A ATUAÇÃO DE RAQUEL DODGE
Governo Temer
Indulto: Ação no STF para derrubada de pontos considerados benevolentes a presos por crimes de corrupção.
Trabalho escravo: Recomendação para anulação da portaria com regras que afrouxavam fiscalização, sem acionar o Supremo.
Reforma da previdência: Ação no Supremo contra propaganda com dotação orçamentária suplementar.
Marco temporal: Crítica à tese adotada pelo governo para demarcação de terras indígenas.
Entorno de Temer
Irmãos Vieira Lima: Pedido de prisão preventiva de Geddel, busca da Polícia Federal no gabinete e no apartamento funcional de Lúcio e denúncia contra os dois e mais quatro pessoas em razão dos R$ 51 milhões encontrados no bunker.
Moreira Franco: Parecer contrário à lei que permitiu nomeá-lo ministro da Secretaria- Geral da Presidência e que lhe garantiu foro privilegiado.
Romero Jucá: Parecer reforçando denúncia de Rodrigo Janot contra o líder do governo no Senado.
Aécio Neves: Recurso contra negativa de bloqueio de bens do senador mineiro e da irmã dele, Andrea Neves.
Agripino Maia: Parecer para que o STF aceitasse denúncia contra o senador, presidente do DEM.
Na Lava-Jato
Prisão após condenação em segunda instância: Parecer favorável no Supremo.
Grupo de trabalho na PGR: Reforço de quatro procuradores da República, depois de funcionar com metade do efetivo na gestão de Rodrigo Janot .
Delações: Freio no instrumento e cinco investigações por supostos vazamentos.
Delação dos executivos do grupo J&F: Reiteração de pedido de rescisão.
Eduardo Cunha: Defesa de manutenção da prisão preventiva do ex-presidente da Câmara.
Sérgio Cabral: Parecer a favor da transferência do ex-governador do Rio a presídio federal.