segunda-feira, 23 de outubro de 2017

"Suprema vergonha", por Ana Paula Henkel

O Estado de São Paulo


Nós mineiros temos a fama injusta de sermos pouco claros com as nossas posições. A discrição resiliente, lapidada entre montanhas que testemunharam a brava resistência aos colonizadores, faz parte do espírito que deu ao país Joaquim José da Silva Xavier, Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga.
Lutamos e lutaremos sempre pela liberdade, ainda que tardia.
Votei em Aécio Neves em 2014. Apoiei sua candidatura e não me arrependo.
Impossível esquecer qual era a alternativa. Entre o ex-governador e senador do meu estado que concluiu o mandato como o mais popular do país e o projeto bolivariano que devastou o Brasil, não havia sequer margem para dúvidas de qual caminho escolher. A terra arrasada deixada pelos treze anos petistas fala por si.
As revelações da malfadada e já descartada delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista, atuais hóspedes da Polícia Federal em São Paulo, mostraram um Aécio que nós lamentavelmente não conhecíamos. Seu desavergonhado pedido de dinheiro para o dono da JBS foi uma ofensa imperdoável aos sete milhões de mineiros que deram seu voto a ele e a todos que viram nele uma esperança de renovação com capacidade de gestão e uma visão moderna da política. Supremo engano.
Assim como aconteceu com os heroicos inconfidentes, mártires da luta contra o estado opressor e contra uma carga tributária insuportável na época, e até tímida para os padrões atuais, um novo Joaquim Silvério dos Reis nos apunhalou pelas costas. Nem o povo mais desconfiado do país está a salvo de quem se aproveita da nossa boa-fé, ainda mais com o agravante de usar o pedigree de Tancredo Neves para quebrar resistências. E é cada dia mais fácil constatar que Brasília está cheia de Joaquins Silvérios dos Reis.

O embate da última semana colocou em lados opostos um STF ativista e um Senado corporativista. A Suprema Corte ignorou a Constituição para entregar a cabeça do principal opositor de Dilma Rousseff numa bandeja aos seus inimigos, enquanto nossa Câmara dos Lordes vergonhosamente manteve o mandato de um senador indecoroso. Todos brigaram e ninguém tinha razão.
A revolta com a traição de Aécio não pode, é preciso dizer, cegar a razão. Dar poderes aos ministros do STF para tomar decisões sem o mais remoto eco na Constituição, independente do pretexto, é um perigo de proporções venezuelanas. Como aconselha Michael Corleone em “O Poderoso Chefão III”, a raiva contra o inimigo atrapalha o julgamento. Literalmente.
O estoque de paciência do brasileiro com a corrupção está na reserva, mas é nessa hora que precisamos reabastecer o tanque da democracia com mais democracia. É exatamente nestas horas que oportunistas e inimigos da lei aparecem para dizer que o “sistema” não funciona e que é preciso quebrar tudo e recomeçar do zero a partir de suas próprias utopias. Sabemos como isso termina.
Não é fácil, mas é preciso admitir que quem deve cassar o mandato do senador, como manda a lei, é o Senado. Ainda tenho uma esperança (suprema inocência?) de que o legislativo faça o que tem que ser feito e que acerte as contas com a população, a casa das leis precisa honrar as próprias leis que cria. Como cantou um ex-garoto propaganda da Friboi, “não sou contra o progresso mas apelo pro bom-senso, um erro não conserta o outro, isso é o que eu penso.”
Se há algo que une os americanos de diferentes ideologias político-partidárias, como vejo aqui diariamente, é um respeito quase religioso à Constituição. Mesmo quem não tem formação em direito sente que as instituições funcionam num sistema de freios e contra-pesos (checks and balances) em que cada macaco conhece bem seu galho. A transformação do STF nos últimos anos é preocupante. Quanto mais interpretação livre do texto constitucional pela última instância, mais riscos corremos. Contra o ativismo judicial, a letra fria da lei é a última garantia.
Assistimos incrédulos o ministro Ricardo Lewandowski fazer uma leitura bastante criativa da Constituição ao vivo e em cores para todo o Brasil em plena sessão que decidiu pelo impeachment de Dilma Rousseff, outro fantasma que assombra as Minas Gerais. Quantas vozes se levantaram contra a manutenção dos direitos políticos da ex-presidente? Quem cala, consente.
Para suspender Eduardo Cunha, o finado ministro Teori Zavascki, declarou: “apesar de não ter amparo na Constituição, é uma exceção.” Como era Eduardo Cunha, ninguém reclamou. Lembrando Martin Niemöller, primeiro levaram os corruptos, mas não me importei com isso porque não sou corrupto. Quando vierem me levar, não haverá com quem reclamar.
Depois foi a vez do Ministro Marco Aurélio afastar Renan Calheiros da presidência do Senado em mais um drible inconstitucional. Renan Calheiros tem nada menos que dezessete inquéritos parados no STF e, claro, votou para a manutenção do mandato de Aécio Neves. Supremo deboche.
Em meio a tantas batalhas, o STF encontrou tempo para discutir cigarros com sabor, sacolas plásticas de supermercados, entre outras “urgências nacionais”. Até o momento, nenhuma condenação a qualquer réu da Lava Jato. Estão contando demais com a suprema paciência do Brasil.