quinta-feira, 26 de outubro de 2017

"A brutal impostura", editorial do Estadão

Propaganda comunista quis consolidar

 ideia de que sua revolução era um 

desdobramento da história, mas 

felizmente hoje há cada vez menos gente

disposta a defender essa fraude



Não há o que celebrar no centenário da chamada Revolução Bolchevique, de 25 de outubro. Em nome da igualdade entre os homens, a população da Rússia se tornou escrava dos desígnios de um partido que se dizia portador da verdade e da história, e essa impostura se espalhou, nas sete décadas seguintes, para vários outros países do mundo. O único legado realmente importante desse movimento, além dos milhões de mortos que causou e da destruição econômica que proporcionou, é a preciosa lição segundo a qual é possível aniquilar a democracia apenas com boas intenções.
A sobrevida que a ideologia bolchevique parece manter mesmo depois de inapelavelmente derrotada em 1989, com a queda do Muro de Berlim e a posterior dissolução da União Soviética, pode ser explicada justamente pelo fato de que toca o coração da juventude a pretensão de acabar com as injustiças do mundo como um ato de vontade. A crescente desigualdade social e econômica e o atraso crônico de muitos países em que vigoram formas degeneradas de capitalismo só ajudam a alimentar esse devaneio, dando ares de alternativa viável ao que não passa de uma utopia violenta.
Essa utopia foi tão bem urdida que, mesmo com a distância de um século, ainda há quem acredite na mistificação, criada pela propaganda do Partido Comunista da União Soviética e reproduzida obedientemente por seus pares mundo afora, segundo a qual o povo, em fervor revolucionário, foi o grande protagonista dos acontecimentos de outubro de 1917. Em primeiro lugar, o que se poderia chamar de revolução ocorrera não em outubro de 1917 (novembro, pelo calendário russo), mas em fevereiro daquele ano, quando o czarismo deu lugar a uma república que se pretendia democrática. Em outubro, os bolcheviques deram um golpe, derrubaram o governo provisório e assumiram o poder. Nem de longe essa facção marginal do movimento socialista poderia dizer que atuava em nome dos proletários russos. Aliás, quando os bolcheviques dissolveram à força a Assembleia Constituinte que os contrariava, o povo saiu às ruas para protestar e acabou esmagado pela repressão que seria a marca do regime que apenas se iniciava.
Antes de ser o condimento de uma época de grandes antagonismos, a brutalidade era a essência mesma do bolchevismo, sob a liderança de Lenin. E assim tinha de ser, se o que se almejava era acelerar a história – pretensão de qualquer movimento totalitário. Se Marx, profeta da revolução, havia dito que o comunismo era a consequência natural das contradições do capitalismo, então cabia à vanguarda revolucionária impedir de toda maneira que esse processo fosse obstado pelos “inimigos do povo” – expressão oficializada em novembro de 1917 pelo novo regime.
Assim, o “motor da História”, conforme Lenin, era a violência das massas. O ambiente era propício. A Rússia saíra economicamente exaurida da 1.ª Guerra Mundial, situação que ampliou as rivalidades, dissolveu a autoridade do Estado e gerou o clima de guerra civil que afinal eclodiria logo após o golpe. O alvo da ira popular, especialmente entre os soldados de origem camponesa, não era mais o alemão, mas o russo rico que explorava os mais pobres.
Lenin entendeu que ali estava a chave para o sucesso do novo regime, ao escrever que “a essência do trabalho bolchevique” era “visar à transformação da guerra imperialista em uma guerra de classes, em uma guerra civil”, de modo a “purificar a terra russa de todos os insetos nocivos”. Estava estabelecida, como política de governo, a cultura da violência política – os gulags, as execuções em massa, as deportações, os julgamentos falsos, tudo isso passou a ser justificado em nome do triunfo da revolução contra o “inimigo”, que está em todo lugar e pode ser qualquer um.
Assim, é importante aproveitar essa efeméride para reiterar o verdadeiro espírito da Revolução Bolchevique, que de nenhuma maneira pode ser confundido com os legítimos ideais da esquerda democrática, cuja contribuição para a construção da cidadania e para a inclusão social é inegável. A propaganda comunista pretendeu consolidar a ideia de que sua revolução era um desdobramento inevitável da história, mas felizmente hoje há cada vez menos gente disposta a defender essa fraude.