Até agora, sem uma defesa técnica convincente, Lula vinha enfrentando seu calvário criminal acorrentado ao enredo-procissão. Nele, a divindade percorre sua via-crúcis, cabendo aos devotos gritar “amém” e denunciar os ímpios que tentam crucificar o político mais honesto que o espelho já conheceu. Mas a conversão do discípulo Antonio Palocci à Lava Jato fez de Lula uma espécie de virtude com os glúteos expostos na vitrine.
A decomposição da imagem de Lula atingiu um estágio inédito. O imaculado do PT conseguira atravessar o mensalão sem amarrotar o terno. Na Era do petrolão, depois que a soma das denúncias acomodadas sobre seus ombros chegou à marca de nove, Lula perdeu o paletó e a camisa. Quando sete dessas denúncias foram convertidas em ações penais, ele ficou sem as calças.
A pena de nove anos e meio de cadeia imposta por Sergio Moro deixou Lula sem cueca. Mas ele ainda aguardava no fundo da loja pelo julgamento do recurso no TRF-4. Os glúteos da virtude foram à vitrine por duas razões. Uma é a devastadora carta em que Antonio Palocci se desfiliou do PT com a seguinte pergunta: “Afinal, somos um partido político sob a liderança de pessoas de carne e osso ou somos uma seita guiada por uma pretensa divindade.” A outra razão é a incapacidade de Lula de demonstrar a honestidade que até o ex-discípulo é incapaz de reconhecer.
Medida por seus autocritérios, a virtude de Lula é tão exagerada que, em vez de favorecer, pode aniquilar. Há tantos “mentirosos” contestando Lula que o beato do PT vai se transformando num personagem inacreditável. Os delatores da Odebrecht confirmam a propina. O “laranja” que assumiu o apartamento de São Bernardo desmente a fábula do aluguel. A herdeira do imóvel informa ao fisco que o vendeu imaginando que Lula era o comprador.
Foi contra esse pano de fundo que Palocci disparou suas interrogações mortais. Como essa: “Até quando vamos fingir acreditar na autoproclamação do ‘homem mais honesto do país’ enquanto os presentes, os sítios, os apartamentos e até o prédio do Instituto são atribuídosa dona Marisa?”
O contrário do antilulismo que o PT supõe existir é o pró-lulismo que o PT gostaria que existisse. Tal sentimento, para sobreviver, exigiria a aceitação de todas as presunções de Lula a seu próprio respeito. Algo que só seria possível com a aceitação da tese segundo a qual Lula de fato tem uma missão especial no mundo, de inspiração divina e, portanto, inquestionável.
Se Lula reconhecer que também está sujeito à condição humana, pode sair da vitrine. Se seus advogados pararem de atacar investigadores e magistrados para levar meio quilo de explicações à balança, Lula pode recuperar o paletó. Se a defesa parar de utilizar Marisa Letícia como álibi de todas as culpas, o marido talvez consiga reaver a cueca.
Quanto às calças, não será fácil tê-las de volta. A coisa seria simples se os ataques de Palocci tivessem transformado Lula num político igual a todos os outros. Mas foi pior do que isso. A descompostura companheira fez de Lula um personagem completamente diferente de si mesmo —ou da divindade que ele imaginava ser.