Colunista da Folha de S.Paulo, Giovana Madalosso, responsável por fake news sobre nazismo | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
O artigo publicado na Folha que acusa uma família de simpatizar com o nazismo confirma que o jornal merece destaque no capítulo brasileiro da história universal da infâmia
Os manuais de redação ensinam que a abertura de um texto jornalístico deve responder a seis perguntas básicas sobre o que se vai ler: o quê (a ação), quem (o agente), quando (o tempo), onde (o lugar), como (o modo) e por quê (o motivo).
No domingo, 21 de maio, a Folha de S.Paulo publicou um artigo da jornalista e escritora Giovana Madalosso que trucida tais fundamentos. O título continha o aviso: “Fui surpreendida por uma saudação nazista”.
Os parágrafos seguintes tratam da viagem de Giovana ao lado do “companheiro” e de seus filhos por uma região de Santa Catarina. Ela soube por um amigo que ali existia uma casa ornamentada com uma saudação nazista. “Eu não botei muita fé”, ressalva a escritora, antes de corrigir a afirmação. “Quer dizer, conhecendo bem o Estado e sabendo que 69% de seu eleitorado votou em um fascista, até botei, mas achei que era coisa discreta, furtiva.”
“Foi no segundo dia, (sic) que o telhado despontou ao acaso, rompendo a serenidade do céu azul”, diz. “Lá estava a palavra HEIL, escrita com telhas, grande e destacada o bastante para ser lida a distância”. Foi o suficiente para Giovana: aquela era a evidência de que o Estado de população majoritariamente fascista abrigava também nazistas. A prova estava naquela palavra, estampada em letras enormes nos telhados das casas. Na cabeça de Giovana, aquilo só poderia ser a reprodução do cumprimento usado por devotos de Adolf Hitler durante a guerra que terminou há quase 80 anos.
A imaginação da jornalista foi em frente. “Meus enteados, de 14 e 18 anos, perguntaram se aquilo era de fato uma alusão ao nazismo. Expliquei que muito provavelmente, já que Heil, Hitler (Salve, Hitler) era uma conhecida saudação nazista, familiar a todos que falam alemão e aos que sabem um pouco mais sobre a Segunda Guerra.” Nesse momento ela deduziu que a comunidade em volta e as autoridades eram, na melhor das hipóteses, coniventes.
Giovana fez um punhado de fotos e até pensou em tocar a campainha e conversar com moradores. Mas ficou receosa de envolver os garotos numa situação imprevisível. “Num certo momento”, revelou, “virei para o lado e vi o rosto do mais novo, a expressão triste emoldurada pelo capuz de moletom”, diz. Num delírio final, ela conta que lembrou “o que ele tinha passado havia poucas semanas: o medo de ir para aula e ser morto a tiros ou facadas quando anunciaram possíveis ataques — um terço dos episódios ocorridos em escolas do país é ligado ao neonazismo”.
Ficção versus realidade
Meia dúzia de perguntas a vizinhos ou uma rápida busca no Google teriam evitado o desastre jornalístico. Ela teria descoberto, por exemplo, que Heil é um sobrenome muito conhecido em Santa Catarina, principalmente em Brusque. Nessa cidade vive a família proprietária dos imóveis em Urubici, onde estão as casas acusadas de estampar a saudação nazista.
Obcecada pela caça ao que considera “desinformação”, a agência de checagem Aos Fatos ignorou o caso da família Heil
Prefeito de Brusque de 1966 a 1970, Antônio Heil tem seu nome na placa de diversas ruas espalhadas por municípios catarinenses e também batiza a rodovia que liga Brusque a Itajaí. “Fiquei indignado ao ver uma jornalista escrever sem apurar”, protestou o governador Jorginho Mello. “Ela não sabia que escrever o nome da família no telhado era uma tradição de mais de 30 anos dos Heil. Justamente para facilitar aos turistas a localização da pousada, quando não havia internet.”
Mesmo confrontada com protestos do governador, de integrantes da família Heil e de muitos leitores, a Folha manteve o texto em seu site e redes sociais. Limitou-se a infiltrar um acanhado “possível” no título original (“Fui surpreendida por uma possível saudação nazista”) e incluir uma errata, em letras miúdas: “É incorreto afirmar que a inscrição Heil no telhado dos imóveis ‘muito provavelmente’ seja uma referência a uma saudação nazista, como publicado em versão anterior deste texto”. A mentira prevaleceu e continua circulando.
A torpeza do jornal ignora limites estabelecidos pela ética e pelo bom senso. Numa reportagem que tenta explicar o atropelamento da verdade, a Folha reconhece o erro de Giovana. Também tenta explicar por que não removeu o texto: “Seria uma medida contrária à transparência preconizada pelo Manual”. No fim, resume a sua linha de defesa ao dizer que Giovana recebeu centenas de ofensas por meio das redes sociais e foi alvo de dezenas de ameaças. Como se fosse ela, e não os leitores, a vítima do show de precipitações.
Obcecada pela caça ao que considera “desinformação”, a agência de checagem Aos Fatos ignorou o caso da família Heil. Das 16 verificações publicadas entre os dias 21 e 30 de maio, 12 defendiam Lula, ministros, movimentos sociais ou aliados do governo (uma, por exemplo, afirmava: “É falso que governo Lula e STJ autorizaram invasão de domicílio”; outra: “É falso que general afirmou em depoimento que Lula armou atos golpistas de 8 de janeiro”). Outras três abordaram temas gerais (“ONG no RJ que armazenava armas e granadas não pertence a Luciano Huck”). Uma continha críticas acanhadas ao presidente (“No exterior, Lula desinforma sobre projeto da Petrobras na Amazônia e guerra na Ucrânia”).
Torpeza histórica
Ao comentar o artigo da Folha no site Poder360, a jornalista Paula Schmitt afirmou que o dia 21 de maio de 2023 entrará para os anais da imprensa brasileira. “Foi neste dia que a Folha de S.Paulo perdeu o pudor que lhe restava e arregaçou o cúmulo do desprezo pelo jornalismo”, constata. “O texto é uma aula de torpeza moral em que pessoas inocentes são acusadas sem nenhum julgamento.”
A falta de pudor da Folha, entretanto, é antiga e já chegou a atingir campos decididamente minados. Durante o regime militar, o jornal jamais precisou ter a redação vigiada por um censor — ao contrário do que ocorreu, por exemplo, na revista Veja ou no Estadão. Para colaborar com a ditadura, o jornal praticava a autocensura.
Mas nenhum outro episódio foi tão infame quanto o assassinato de Eduardo Collen Leite, codinome Bacuri. Incorporado a um grupo terrorista, foi capturado pela polícia, mas sua prisão permaneceu em sigilo. Pouco antes da morte, em dezembro de 1970, seus algozes mostraram a ele na prisão a primeira página de um jornal que noticiava sua fuga inexistente. O aviso ficou claro: sua morte era iminente. O veículo da obscenidade foi a Folha da Tarde, pertencente ao Grupo Folha.
“Eu vi a cena famosa do sargento mostrar o jornal para ele com a notícia que ele tinha fugido da prisão do Toledo”, conta o psiquiatra Reinaldo Morano, ex-militante da luta armada, num depoimento para o Memorial da Resistência. “Nós não tínhamos dúvida de que aquilo era a preparação para a morte. E era a Folha. Ela fazia esse trabalho de dar cobertura para a repressão.”
Leia também “Porta-vozes da tirania”
Revista Oeste