sexta-feira, 14 de abril de 2023

'A gravidez fora do corpo está perto de se tornar realidade', por Dagomir Marquezi

 

Tecnologia dos úteros artificiais | Foto: Shutterstock


O útero artificial está chegando, para o bem e para o mal. Feministas radicais já lutam pelo direito de matar seus fetos


“Ectogenesis” vem do grego e quer dizer “nascimento do lado de fora”.  Significa a possibilidade de gestação de uma criança fora do corpo de uma mulher. O termo foi inventado pelo cientista britânico J. B. S. Haldane e vai completar cem anos no ano que vem. Mas essa possibilidade já era imaginada pelos alquimistas do século 16.

O escritor Aldous Huxley havia previsto, em 1931, no seu livro Admirável Mundo Novo, uma sociedade em que ovários seriam extraídos cirurgicamente das mulheres e cultivados em receptáculos artificiais. Esse mundo novo, admirável ou não, está virando realidade. A possibilidade de ectogênese se acelerou nos últimos meses, com a criação de úteros artificiais autônomos, já em fase final de testes em vários institutos e universidades ao mesmo tempo. É uma questão de tempo (e dinheiro) para que chegue ao mercado.

Para que serve um útero artificial? Ele abriga e alimenta um embrião humano (ou não) simulando o útero materno em todos os detalhes possíveis, inclusive reproduzindo o som do coração da mãe. A partir de um determinado estágio de desenvolvimento do feto, a gravidez passa a não depender mais de uma mãe biológica.

Em termos práticos: o órgão artificial poderia servir, por exemplo, para mulheres que tiveram seus úteros danificados ou removidos por causa de alguma doença. Ou para casais mais velhos, já sem condições de reprodução. Outras possibilidades mais polêmicas estão sendo consideradas. Um casal homossexual ou um homem solteiro podem iniciar uma gravidez numa barriga de aluguel e transferir o feto para o útero artificial. Mulheres poderão optar por ficar grávidas sem as consequências da gravidez — a barriga, as estrias, o desconforto, o parto em si. Basta engravidar e, num determinado momento de maturação, transferir o feto para a “bolsa”.

Os prematuros e os apocalípticos

Segundo o site Genetic Literacy Project, o útero artificial pode também ajudar de forma definitiva e aumentar consideravelmente as chances de uma criança nascida em parto prematuro. Artigo de Sabrina Stierwalt para a revista Scientific American mostra que, nos Estados Unidos, o nascimento prematuro foi responsável por 17% das mortes de crianças nos anos recentes. Mesmo os que sobrevivem a um parto precoce estão sujeitos a problemas, como paralisia cerebral, doenças respiratórias e problemas de visão. Nos muitos casos em que a mãe não consegue terminar o processo natural de gravidez e o feto é expelido antes do tempo de maturação (ao redor do sexto mês de gravidez), ele poderá ter uma segunda chance na “bolsa”. De certa forma, não haveria mais partos prematuros.

“Ser ‘humano’ ainda é aplicável se os embriões não são tecnicamente gerados em um útero humano?”

Existe uma corrente que diz que a ectogênese vai virar uma forma de fazer a humanidade sobreviver a uma catástrofe apocalíptica. “Recentemente”, escreveu Matthew Edward, professor da Universidade Princeton,  para o site ScienceX: “Parece que todo filme, livro e videogame que vemos é sobre futuros apocalípticos. Artigos científicos também estão pintando um futuro sombrio para a Terra e seus habitantes. Se não for o aquecimento global que nos atingirá, serão armas nucleares, pandemias ou inteligência artificial fora de controle”.

O útero artificial pode também ajudar a aumentar consideravelmente as chances de uma criança nascida em parto prematuro | Foto: Shutterstock

O que é o “ser humano”?

Qual seria então a solução para a preservação da espécie, segundo o professor Edwards? “Embora seres humanos, animais e plantas perecessem em um evento de extinção em massa suficientemente poderoso, seus embriões criopreservados e sementes de plantas poderiam sobreviver. Estes poderiam ser armazenados em bunkers subterrâneos profundos, para eventos de curta duração, e em naves espaciais totalmente automatizadas em órbita, para eventos de longa duração. Depois que as condições favoráveis da superfície retornassem à Terra, após um evento apocalíptico, os embriões seriam descongelados e criados, usando as emergentes técnicas de reprodução assistida da ectogênese: desenvolvimento de embriões para neonatos fora do útero natural. Os recém-nascidos humanos e animais seriam então criados por guardiões e agricultores androides.” 

Mais um delírio? Ultimamente, a realidade está cada vez mais parecida com uma grande alucinação, para os que não estão preparados para mudanças radicais. O jornalista norte-americano Zoltan Istvan, que se define como um “trans-humanista” (ou seja, que propõe a integração entre seres humanos e a tecnologia), levantou, para a revista Newsweek, algumas questões importantes para essa nova era. “Ser ‘humano’ ainda é aplicável se os embriões não são tecnicamente gerados em um útero humano? E quanto à ‘mãe’? Será que a mística feminina se perderá com um processo artificial substituindo algo que há muito tempo é parte integrante do domínio feminino?”

Como um trans-humanista, Istvan apoia com entusiasmo o processo de criação artificial: “A teoria é que cada batimento cardíaco, chute e momento da vida de um feto poderiam ser cuidadosamente monitorados, desde o zigoto até o momento em que o bebê dá seu primeiro suspiro. Cada nutriente que o feto recebe seria medido, cada movimento que ele faz seria filmado, cada batimento cardíaco seria analisado quanto ao tempo adequado. Como acontece com todas as novas tecnologias, costumes biológicos e sociais tradicionais poderiam dar lugar a práticas mais recentes que prometem segurança, eficiência e praticidade.”

Após um evento apocalíptico, os embriões seriam descongelados e criados, usando as emergentes técnicas de reprodução assistida da ectogênese | Foto: Shutterstock

Embriões de mini-me

Algumas questões éticas nessa área, no entanto, são material para pesadelos. No ano passado, cientistas do Instituto Weizmann, em Israel, criaram o primeiro embrião sintético. Ele não requer esperma, óvulos nem fertilização — apenas células-tronco. O jornalista australiano Michael Cook escreveu um artigo no site MercatorNet sobre a criação desses primeiros embriões sintéticos. Usando células-tronco de ratos, esses cientistas criaram embriões que foram cultivados num útero artificial e que viveram por oito dias e meio. Esses embriões desenvolveram corações que batiam, sangue que circulava, mecanismos intestinais e esboços de crâneos ao redor de cérebros em formação. A pergunta inevitável: que tipo de seres são esses?

O biólogo Jaco Hanna, um porta-voz desse experimento, declarou ao site científico Cell que o objetivo de sua start-up Renewal Bio vai ser criar embriões sintéticos humanos como fábricas de células para o sistema imunológico dos idosos, por exemplo. Ou a criação de óvulos em embriões femininos feitos em laboratório. O doutor Hanna nega que esses embriões sintéticos a serem cultivados sejam seres humanos em si. “Chamar um embrião de 40 dias de mini-me simplesmente não é verdade.”

O jornalista Michael Cook levanta uma questão ética fundamental. Um cientista como Jaco Hanna está preocupado em criar um produto comercializável para atender a clientes em potencial. E ele mesmo admite que seus embriões artificiais serão criados o mais próximo possível dos naturais, para que possam atender aos objetivos medicinais propostos pela experiência. “Se eles não são humanos inicialmente, será que podem se tornar humanos mais tarde, conforme as pesquisas avançam?”, pergunta Cook. E se os embriões são seres humanos em potencial, retirar partes deles e matá-los não seria um crime? Quem vai determinar esses limites éticos e legais? O doutor Hanna?

embrião
Embriões naturais (acima) e sintéticos (abaixo) para mostrar a formação comparável do cérebro e do coração | Foto: Divulgação/Universidade de Cambridge

Paz em torno do aborto?

Existem os otimistas, como o bioeticista Xavier Symons, da Universidade de Georgetown, nos EUA, que acreditam que a ectogênese pode selar a paz entre quem apoia o aborto e quem é contra ele. “A nova tecnologia significará que não precisaremos mais discutir sobre o ônus que a gravidez impõe à mãe”, escreveu Symons para o site BioEdge, especializado em bioética. “A ectogênese literalmente tira o ônus físico que a criança representa (pelo menos durante o desenvolvimento fetal). Os bioeticistas Eric Mathison e Jeremy Davis, da Universidade de Toronto, argumentaram recentemente que as mulheres têm direito ao aborto — ou seja, remover fetos de seus corpos —, mas não têm direito de matar o feto. Mathison e Davis argumentam que remover um feto e colocá-lo em ectogênese é uma maneira de respeitar tanto os direitos da mãe quanto os direitos do feto. Eles chamam sua solução para o dilema do aborto de ‘aborto por ectogênese’.”

Até legalmente estamos numa zona cinzenta. O Brasil, por exemplo, proíbe o aborto, com as três conhecidas exceções — risco à vida da gestante, em caso de estupro e de anencefalia, (a ausência de cérebro na criança). Mas todas as possibilidades legais estão ligadas prioritariamente à mãe grávida. Um feto criado num útero artificial, a princípio, não teria direito nenhum. Só ganharia seus direitos no momento do nascimento.

Quais as consequências sociais da ectogênese? Uma corrente diz que, ao se livrar da gravidez normal, as mulheres vão se tornar mais competitivas no mercado de trabalho. Por outro lado, homens poderão ter mais direitos sobre o destino dos fetos, pois eles não estarão mais sob responsabilidade solitária da mãe. 

‘March For Life’ organizada para combater a legislação do aborto no Reino Unido | Foto: Shutterstock

A fúria das feministas de esquerda

Claire Horn, da Universidade de Londres, desfila todos os clichês de militância contra os úteros artificiais: “Dados os abusos históricos e contínuos de esterilização contra mulheres negras, comunidades indígenas, pessoas de cor, pessoas com deficiências e pessoas LGBTQIA+, quais leis, políticas e práticas contemporâneas precisam ser abordadas em jurisdições específicas para garantir que o uso coercitivo dessa tecnologia seja proibido?”.

A nova leva de feministas de esquerda parece estar preocupada unicamente com os direitos das mulheres (e transgêneros etc.). Falam em igualdade, em fim da exploração dos machos, em luta de classes, falam numa suposta violência de quem é contra o aborto. Só não parecem se importar com as crianças que nascerão (ou não) nesse processo.

A jornalista Kathleen Stock escreveu no mês passado para o jornal britânico The Times uma resenha do livro Eve: The Disobedient Future of Birth  (“Eve: O Desobediente Futuro do Nascimento”), escrito pela feminista de esquerda Claire Horn. “Em Horn, temos uma comentarista religiosa que não percebe que é religiosa”, escreve Stock. “Sua religião não divulgada é a versão extrema do feminismo esquerdista popular nas universidades, que afirma que a liberdade de escolha é o valor ético mais alto, superando todos os outros.”

O direito de matar o feto 

No seu extremismo, Horn não fala em “mãe” e “filho”, mas em “pessoa grávida” e “pessoa nascente”. “Para Horn”, segundo Kathleen Stock, “o aborto não é ‘um problema moral’ ou algo que devemos ‘ter de justificar’, mas, sim, ‘cuidados de saúde vitais’. (…) Pior, discussões daqueles que citam o bem-estar do feto como relevante para a ética da gestação artificial são descartadas nos termos mais grosseiros, como discursos de má-fé, que apenas fingem se importar com o nascituro, mas na verdade são sobre ‘exercer controle sobre a reprodução’ de alguma maneira sinistra, ou até mesmo são ‘parte da tradição racista em andamento da eugenia’.”

Duas outras feministas, Rosalind Moran e Jolie Zhou escreveram um artigo sobre o avanço do útero natural para a última edição da revista Wired e não disfarçam suas posições:  

“Os defensores antiaborto tendem a argumentar que o feto é humano desde a concepção e que matar uma pessoa inocente através do aborto é imoral. Já os defensores pró-escolha dos direitos ao aborto enfatizam a autonomia corporal e se baseiam em argumentos como os apresentados pela filósofa Judith Thomson em seu ensaio altamente influente de 1971, A Defesa do Aborto. Thomson argumenta que, mesmo que um feto seja uma pessoa no momento da concepção, a autonomia corporal da mulher — seu direito de decidir o que pode acontecer em seu corpo e a ele — significa que é moralmente aceitável remover o feto de seu corpo. A consequente morte do feto é uma consequência inevitável do término da gravidez, em vez de ser a intenção da mulher. Isso significa que o aborto é mais um ato de autodefesa por parte da mulher do que um assassinato intencional”.

Em seu artigo para a Wired, Moram e Zhou na prática defendem o direito que elas têm a matar o feto que conceberam, ao invés de dar uma sobrevida a ele num útero artificial: 

“Embora a ectogênese torne possível evitar a gravidez sem encerrar a vida do feto, tal resultado não é necessariamente positivo do ponto de vista feminista. A realidade é que algumas mulheres que optam pelo aborto o fazem não apenas para encerrar a gravidez — preservando a autonomia corporal —, mas também para evitar se tornarem mães biológicas. A ectogênese ainda a tornaria mãe biológica contra sua vontade e, ao usá-la como alternativa ao aborto tradicional, poderia, portanto, violar sua autonomia reprodutiva”.

O “vago desgosto” de criar uma vida

As autoras do artigo da Wired descartam o uso do útero artificial, que, segundo elas, pode provocar um trauma nas mulheres: “Mesmo que um sistema legal tenha absolvido uma mãe biológica das obrigações legais em relação ao seu filho biológico, ela ainda pode sentir um senso de obrigação para com a criança ou culpa em relação a si mesma, por não incorporar as qualidades de abnegação frequentemente idealizadas e associadas à maternidade. Conviver com essas emoções pode causar danos psicológicos à mãe biológica, e ela também pode estar em risco de enfrentar estigmas sociais relacionados”.

Feministas de esquerda, como Horn, Moram e Zhou, consideram a possibilidade de preservar a vida de seu feto num útero artificial “um dano psicológico”, mas não enxergam qualquer problema em jogar o ser vivo que geraram num lixão hospitalar. Essa visão de mundo é descrita com rara precisão pela jornalista Kathelyn Stock em sua reportagem para o The Times:

“O feminismo esquerdista prevalente hoje em dia trata principalmente a gravidez e o parto com um vago desgosto, como se fossem impostos inconvenientemente por uma natureza recalcitrante que precisa ser controlada. No entanto, para muitas mulheres, a gravidez e o parto trazem admiração e alegria, e um renovado senso de conexão com seus próprios instintos animais”.

Feministas de esquerda consideram a possibilidade de preservar a vida de seu feto num útero artificial “um dano psicológico” | Foto: Shutterstock

Leia também “Perigo: a inteligência artificial é capaz de mentir”

Dagomir Marquezi, Revista Oeste