Galvão Bueno | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Galvão Bueno é a mais recente vitória do streaming contra os velhos modelos de televisão
No sábado 25 de março, a Seleção Brasileira de Futebol jogou com Marrocos, na cidade de Tânger. Perdeu de 2 a 1. Para os brasileiros em geral, o jogo em si não foi o evento mais importante.
Nesse dia, o mais famoso locutor esportivo do país, Galvão Bueno, 72 anos de idade, transmitiu seu primeiro jogo de futebol pelo sistema de streaming, inaugurando seu Canal GB, no YouTube. A transmissão não teve nada de revolucionária. Galvão representa a “velha escola” de televisão, após reinar por 41 anos na Rede Globo.
A estreia também contou com duas estrelas do petismo: o comentarista Walter Casagrande e o “influencer” Felipe Neto. Felipe, que tem se dedicado a defender a censura na internet, onde ele ganha dinheiro, é um dos sócios da Play9 — a produtora por trás do Canal GB. Ele apareceu na transmissão com uma piada agressiva e nefasta que não conseguiu arrancar um mísero esboço de sorriso de Galvão Bueno e ainda levou um pedido disfarçado para que calasse a boca.
Ficou faltando um velho companheiro de Galvão: o comentarista de arbitragem Arnaldo Cesar Coelho. A presença de Arnaldo foi vetada pela Rede Globo. Ele não tem mais contrato com a emissora desde 2018, mas mantém um vínculo, por ser proprietário de um canal afiliado à rede. Esse veto mostrou que o movimento de Galvão Bueno de criar seu próprio canal incomodou os ternos Armani do Jardim Botânico. “A Globo não gostou muito, mas o que eu posso fazer?”, disse o veterano Galvão.
Os números foram promissores, segundo declarou na rede LinkedIn o sócio de Felipe Neto na Play9, João Pedro Paes Leme: “Mais da metade da audiência do jogo entre Brasil x Marrocos, no Canal GB, foi de jovens entre 18 e 34 anos. É impressionante a capacidade que o querido Galvão Bueno tem de se comunicar com eles. Durante as quase três horas de transmissão, foram nada menos do que 10 milhões de views no Canal GB. Passaram por ele simplesmente 5 milhões de usuários únicos, com pico de 1,5 milhão de usuários simultâneos”.
O que quiser, quando quiser
Galvão continua o mesmo, um pouco mais verborrágico e reclamão, já que não deve mais satisfações a ninguém. É impossível dizer se o milhão de visualizações logo nos três primeiros minutos vai se sustentar nas próximas transmissões do Canal GB, ou se foi apenas um momento de curiosidade. Seu nome é muito forte, e ele já foi convidado por dois outros sistemas de streaming, YouTube e Paramount, para comandar transmissões do Campeonato Paulista e da Libertadores da América. Rejeitou as duas propostas, para não criar um clima com a Globo, com a qual tem contrato até o fim do ano que vem, como apresentador de shows e programas esportivos.
A Rede Globo optou por não transmitir o amistoso com Marrocos, porque tinha uma novela nesse horário. Como líder do segmento de TVs abertas, a emissora está engessada pela rigidez da própria programação. Esse modelo é o oposto da dinâmica do espectador de hoje, que quer assistir ao que quiser na hora que quiser. Somente os espectadores mais velhos ainda se submetem a horários fixos de programas, e aceitam passivamente o que as emissoras oferecem.
Em termos práticos, a Globo permaneceu, nesse 25 de março, a líder de audiência entre as TVs abertas, priorizando sua novela no lugar da Seleção. A fragmentação da concorrência acabou beneficiando a emissora, em detrimento da Band, que transmitiu a partida pela TV aberta, assim como a rede por assinatura ESPN em seu serviço de streaming Star+ e o canal de Galvão Bueno. Mas o jogo está virando, definitivamente. A própria Globo já entendeu isso, criando seu serviço GloboPlay. O streaming não é apenas uma mudança de mídia. Ele significa uma mudança de comportamento, com potencial para transformar a própria realidade.
De Santa Catarina para Saint Louis
Uma história exemplar dessa transformação no panorama de mídia aconteceu neste início de ano nos Estados Unidos. A liga norte-americana do “nosso” futebol, de bola redonda, a MLS (Major League Soccer), existe desde 1993. Iniciou seu primeiro campeonato nacional em 1996, com apenas dez equipes. Cresceu muito (hoje tem 29 times), mas até o ano passado continuava desprezada pela imprensa esportiva dos EUA, que só falava em futebol americano, basebol e basquete. Alguns poucos jogos do MLS eram eventualmente transmitidos pela rede ESPN e por emissoras locais de TV. No Brasil, eles estavam no serviço de streaming esportivo DAZN. Era um campeonato quase clandestino, destinado apenas aos fanáticos.
A fome por esportes não pode mais depender do que a Globo, a Band e outras emissoras tradicionais decidem transmitir, num modelo de negócio que parece imutável
O soccer tem potencial para explodir nos EUA. Ele conta com muitos jogadores latinos, especialmente mexicanos e, numa escala bem menor que a Europa, se tornou polo de atração para o mercado internacional. Mas não tinha nenhuma projeção prática na vida dos norte-americanos e dos canadenses.
Em 2022 a Apple entendeu o tamanho desse potencial e assinou um contrato de dez anos, no valor US$ 2,5 bilhões com a MLS. O torneio norte-americano-canadense de soccer passou a contar com uma transmissão com imagem HD 1080 e som 5.1 pela AppleTV, disponível para mais de cem países. Todos os jogos contam com transmissão simultânea em inglês e espanhol. (O CF Montreal também tem uma transmissão em francês.)
Hoje, o nível de transmissão da MLS segue o alto nível da NBA, da MLB e da NFL. O soccer passou a aparecer na imprensa e está sendo levado a sério pelos norte-americanos, talvez pela primeira vez. Os assinantes da AppleTV estão assistindo ao vertiginoso surgimento do Saint Louis City. O time não existia oficialmente até novembro, era considerado menos do que zebra. Ganhou as cinco primeiras partidas de sua história, e hoje está no topo da classificação, com João Klauss, catarinense de Criciúma, como artilheiro e herói.
A entrada da AppleTV na MLS teve impacto suficiente para fazer a empresa pensar seriamente em transmitir a sagrada Premier League inglesa para a própria Inglaterra. O negócio do esporte ainda não dá lucro às empresas de streaming, mas sua força pode atrair multidões de assinantes que hoje dependem da televisão convencional. É um investimento de retorno praticamente garantido para o futuro.
Sinuca e luta livre
A Apple entrou no mês passado no mercado esportivo. A Star+, que transmite pelo streaming a programação da ESPN, é hoje a grande potência do mercado. O assinante da Star+ tem direito a acompanhar a elite do futebol europeu, com os campeonatos principais de Inglaterra, Itália, Espanha, Portugal, Holanda, França, Alemanha, Escócia, Bélgica, além dos principais torneios de México, Uruguai, Equador, Argentina, Turquia, Venezuela. No pacote, estão também o crescente futebol feminino e grandes campeonatos, como a Uefa Europa League e a Copa do Rei. E mais: NBA, Major League Baseball, National Hockey League, Volleyball Champions League, Super Rugby Americas, Fórmula Indy e a versão brasileira da NBA, a NBB.
A Paramount+ anunciou em fevereiro que adquiriu até 2026 o direito de transmissão de dois dos mais cobiçados campeonatos de futebol da América Latina, a Conmebol Libertadores e a Conmebol Sul-Americana. Para isso, eles reuniram nomes como o apresentador Nivaldo Prieto (ex-Fox Sports) e o comentarista Paulo Vinícius Coelho, o PVC, que, como Galvão Bueno, também deixou a Globo.
Bem desfalcada, a DAZN atende a públicos regionais, transmitindo os campeonatos pernambucano, goiano, cearense e alagoano de futebol. E mira os fanáticos por esportes que não são incluídos nos outros serviços de streaming: dardos, kickboxing, MMA, corridas de moto, boxe, sinuca e luta livre.
No Brasil, tornou-se exemplar o sucesso de Casimiro Miguel, do canal CazéTV, no YouTube, que transmitiu a Copa do Mundo do Catar, jogos do Campeonato Brasileiro e o Mundial de Clubes, que aconteceu em Marrocos, em fevereiro deste ano.
“O streaming é o século 21”
Com essa quantidade de oferta, fica cada vez mais difícil defender sistemas de negócio retrógrados como o da Rede Globo. Esse sistema ultrapassado foi quebrado nos EUA em agosto de 2022, segundo a revista Variety, quando pela primeira vez os serviços de streaming ultrapassaram (com 34,8% da audiência) a TV por assinatura (com 34,4%), deixando em último lugar as redes de TV aberta (com 21,6%).
No Brasil, essas mudanças costumam demorar um pouco, mas é só questão de tempo para que a virada aconteça também por aqui. A Kantar Ibope apontou num domingo, 22 de janeiro, uma ultrapassagem da soma dos serviços de streaming (com 10 pontos) sobre a Rede Globo na Grande São Paulo (com 9,3 pontos). Em terceiro lugar estava a Rede Record com 6,8 pontos. Em quarto, o SBT, com 5,9. Nesse mesmo levantamento da Kantar Ibope, citado pelo site Na Telinha, a soma das TVs pagas alcançou o quinto lugar, com 4,4 pontos de audiência. E as três redes restantes patinavam feio rumo à total irrelevância — Band (1,1 ponto), Cultura (0,4) e Rede TV (0,1). Um terço das TVs brasileiras permanece ligado na Globo 24 horas do dia. Mas esse número cai diariamente, enquanto o streaming cresceu 34% em relação a 2020. Somando o streaming e o YouTube, 23,7% das pessoas já não assistem mais à TV tradicional, seja paga, seja aberta.
O excesso de oferta está na verdade afetando a todos no ramo da mídia. Temas como saúde, bem estar, alimentação ou ciêcias, por exemplo, são abordados de maneira muito mais precisa em programas disponíveis nas redes sociais do que na televisão aberta, já que os espectadores podem procurar por quantos vídeos quiser sobre assuntos do seu interesse.
Usuários estão passando cada vez mais tempo assistindo a clipes amadores de pessoas dançando no TikTok do que a programas, filmes e séries das redes profissionais de streaming. Segundo pesquisa da Civic Science (citada pelo site brasileiro Splash), em 2023 mais da metade dos usuários de redes sociais nos EUA vai fazer compras clicando em redes sociais, especialmente o Tik Tok, com um aumento de 40,6% entre os compradores. Dessa forma, sobra menos dinheiro de publicidade para os profissionais. E é por isso que vemos cortes de pessoal aos montes não só na Globo, como na Amazon, Spotify, Disney, Netflix etc.
Mas o esporte continua sendo tão vital como respirar, o que gera renda farta para quem o transmite. E a fome por esportes não pode mais depender do que a Globo, a Band e outras emissoras tradicionais decidem transmitir, num modelo de negócio que parece imutável. O público quer mais, e encontrou uma fonte inesgotável de atrações esportivas no streaming, além de mais respeito pelas suas necessidades. Tanto que até o Galvão Bueno deixou de lado seu bordão “Bem, amigos da Rede Globo”.
“O futebol foi um produto perfeito para a comunicação do século 20 e os projetos de expansão da comunicação de massa reguladas pelos Estados”, declarou Bruno Maia, especialista em marketing e inovação, ao portal Terra. “O streaming é o século 21, com distribuição descentralizada, através de dados que circulam pela neutralidade da rede da internet, sob a qual a interferência dos governos acaba sendo mais limitada. Neste novo cenário, o consumo é pensado para atingir audiências que têm possibilidade de customizar suas rotinas e seu entretenimento. Não são mais reféns de uma programação única típica da comunicação de massa, que lhes impunha narrativas. Este futuro já chegou e a prova está aí na democratização das transmissões.”
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