Manifestação em frente ao Comando Militar do Leste na cidade do Rio de Janeiro nesta quinta-feira (02) | Foto: João Gabriel Alves/Agif/Estadão Conteúdo
Paralisação de caminhoneiros e protestos de rua mostram que o governo Lula vai enfrentar uma oposição tão feroz quanto a que praticou
Acompanhada do casal de filhos — uma menina de 8 anos e um menino de 10 — uma eleitora de Jair Bolsonaro saiu de Monte Alto no interior de São Paulo rumo à capital, na sexta-feira que antecedeu a eleição, exclusivamente para participar do pleito. Na segunda-feira, ao voltar para casa de ônibus, teve uma desalentadora surpresa. Por causa do bloqueio dos caminhoneiros na Rodovia dos Bandeirantes, em protesto contra o resultado oficial da eleição, ela demorou quase nove horas para completar o trajeto que leva pouco mais de cinco horas.
“Foi uma situação desesperadora, até porque, ao meu lado, havia uma senhora com o filho recém-operado de uma cirurgia que fizera no dia anterior”, relatou. “Meu marido sugeriu que eu pegasse um Uber e voltasse para São Paulo, mas nem isso era possível, porque os dois lados da pista estavam interditados. As pessoas estavam com fome e sede.”
Essas manifestações eclodiram um dia depois da disputa eleitoral. E acabaram atrapalhando a vida de muita gente, inclusive daqueles que apertaram 22 na urna. No ápice dos atos, mais de 300 interdições estabeleceram-se em 18 Estados, mais o Distrito Federal. Era visível o descontentamento com o desempenho do TSE na campanha eleitoral. Entretanto, as reivindicações não ficaram claras. Em vários focos dos protestos, os manifestantes pediam intervenção militar e intervenção federal.
Tanto o flerte com o autoritarismo quanto a obstrução de vias públicas são condenáveis, visto que desestabilizam as instituições, suprimem as liberdades individuais e tolhem o direito de ir e vir dos brasileiros. Segundo militares consultados pela Revista Oeste, as intervenções das Forças Armadas não podem ser adotadas por impulso, emoção ou indução. “É algo que obrigatoriamente encerra um apurado estudo da situação, que leva em conta a ordem pública, as conjunturas interna e externa, o interesse nacional e, principalmente, as suas consequências”, observou o general da reserva Paulo Chagas.
A vez mais recente em que uma intervenção federal ocorreu no Brasil foi em 2018, no Rio de Janeiro, para reduzir a criminalidade. Ela é prevista na Carta Magna para uma série de casos excepcionais, nos quais a União é autorizada a intervir nos Estados ou no Distrito Federal. Quando isso ocorre, o governo estadual perde totalmente ou em parte as suas competências, até que a situação seja normalizada. Já a intervenção militar seria uma ruptura institucional absoluta.
Em um vídeo publicado nas redes sociais, a mensagem de Bolsonaro aos caminhoneiros mostrou que as intervenções esperadas por eles não virão. “Quero fazer um apelo a vocês: desobstruam as rodovias”, pediu o presidente. “Isso aí não faz parte das manifestações legítimas. O fechamento de rodovias prejudica o direito de ir e vir das pessoas. Está na Constituição, e nós jogamos dentro das quatro linhas da Carta Magna.”
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), entrou em cena e determinou o desbloqueio imediato das vias. O juiz do STF chegou a definir multa de R$ 100 mil para quem desobedecesse à ordem. O magistrado mandou ainda as polícias militar, rodoviária e federal prenderem os manifestantes. “Serão tratados como criminosos”, disse o magistrado, durante uma sessão no Supremo.
A velha imprensa tratou de alimentar os devaneios autocráticos do presidente do TSE. A Folha de S.Paulo, por exemplo, qualificou todos os brasileiros que foram às ruas como “golpistas”. “É farto o acervo de registros das movimentações que exigem golpe militar, sob o eufemismo de ‘intervenção federal’ e de manifestantes que se recusam a aceitar o resultado das eleições brasileiras”, esbravejou o jornal.
A mesma Folha não utilizou adjetivos maledicentes para se referir aos militantes de esquerda que protestaram contra a vitória de Bolsonaro em 2018. Apenas dois dias depois das eleições daquele ano, os petistas convocaram manifestações em cinco capitais — São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e Recife. Na ocasião, os protestos eram de “resistência” ao futuro governo, que ofereceria “um risco à democracia e à manutenção dos direitos”. Quatro anos depois, em um processo de metamorfose linguística incompreensível, a “resistência” se transformou em “golpismo”.
Sem o posicionamento claro e oficial de Bolsonaro, a situação poderia ter ficado pior. Em Mirassol, no interior de São Paulo, um motorista de esquerda atropelou pelo menos sete pessoas na Avenida Washington Luís. Entre as vítimas, havia dois policiais militares e uma criança de 12 anos. Até o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, liderado pelo deputado federal eleito Guilherme Boulos (Psol-SP), decidiu se manifestar. O grupo mobilizou seus militantes para “desbloquear” as estradas e confrontar os apoiadores do presidente da República.
O cientista político Paulo Kramer afirma que Bolsonaro agiu corretamente, visto que preservou o direito de ir e vir de todos os brasileiros. O especialista defendeu o direito de se manifestarem, desde que de maneira ordeira e pacífica. “As pessoas podem se expressar, como prevê a Constituição”, disse.
Oposição nas ruas muda estratégia
Depois da declaração do chefe do Executivo, as manifestações dos caminhoneiros arrefeceram, embora ainda houvessem 32 rodovias com bloqueio parcial ou total em 11 Estados nesta quinta-feira. Os atos violentos deram lugar a protestos mais ordeiros, que não tolheram o direito de ir e vir dos cidadãos. No Dia de Finados, milhares de pessoas reuniram-se em frente a Tiros de Guerra, Batalhões da Polícia e do Exército. Elas vestiam verde e amarelo, em uma demonstração de ofensiva ao presidente eleito.
Os atos foram registrados em 28 cidades, em cerca de dez Estados, mais o Distrito Federal. A maioria ocorreu em Santa Catarina. Em Brasília, a manifestação concentrou-se em frente ao Quartel General do Exército. Em São Paulo, em ao menos dois locais: perto do Comando Militar do Sudeste, na região do Ibirapuera, e em frente ao Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, no bairro de Santana, zona norte. No Rio, um protesto gigantesco ocupou parte do centro, na Avenida Presidente Vargas, em frente ao Comando Militar do Leste. Outro grupo se reuniu na Vila Militar, em Deodoro, zona oeste da cidade.
Os manifestantes sustentam que houve fraude na contagem de votos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), embora as provas de trapaça não tenham sido apresentadas. Por isso, exigem que seja divulgada a auditoria das urnas eletrônicas pelo Ministério da Defesa. Também questionam o desempenho do Poder Judiciário, com destaque para o Tribunal Superior Eleitoral, numa campanha manchada por preferências políticas e ideológicas de autoridades obrigadas por lei a agir com imparcialidade.
Para Chagas, é “improvável” que o relatório da Defesa apresente deficiências nas urnas eletrônicas. “A minha avaliação é que não houve nada”, observou. “Se tivesse alguma coisa, todos estariam botando a boca no trombone.”
“Metade da nação não o aceita de forma alguma e outros muitos brasileiros que nele votaram desconhecem, por alienação intelectual, seu triste envolvimento com a justiça brasileira”, afirmou o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva. “Quando gigantescas parcelas da população bradam a plenos pulmões e em todo o Brasil que Lula deveria estar na prisão, ficam claras as consequências danosas da pessoa do futuro presidente para o autorrespeito e a autoestima de metade ou mais da metade da nação, hoje moral e ideologicamente rachada”. Rocha Paiva pondera, contudo, que “se não houve fraude no processo eleitoral, não há como reverter o resultado do pleito”, diz. “Porém, a reação popular servirá de alerta aos futuros dirigentes de que haverá cerrada vigilância por uma gestão honesta, sem corrupção, e em defesa da liberdade e da democracia contra a imposição da ideologia socialista, marxista-leninista e liberticida, almejada pelo PT.”
O cientista político Christopher Garman avalia que os conservadores saíram da eleição com o sentimento de que foram roubados, “principalmente ao observarem a forma como o STF e o TSE conduziram a disputa”. “As duas Cortes pesaram a mão no ativismo judicial durante as eleições”, constatou. “O que vejo é que os protestos vão continuar, mas de natureza mais ordeira e pacífica.”
Esse processo eleitoral viciado pôde ser observado especialmente nas decisões dos ministros, que foram sustentadas por preferências ideológicas. Os advogados de Lula, com a contribuição do senador Randolfe Rodrigues, atravessaram outubro pressionando os aliados no TSE com a média diária de cinco ações judiciais — ora exigindo direito de resposta, ora reivindicando a supressão de verdades, ora pedindo a imposição da censura a empresas de comunicação ou veículos jornalísticos. As ações emplacadas por assessores jurídicos de Bolsonaro não chegaram a dez. O TSE disse “sim” a quase todas as remetidas por lulistas. Até às que imploraram pela exumação da censura — abjeção sepultada em cova rasa na década de 1970.
Ainda que o petista consiga cooptar integrantes do centrão, o Parlamento tem novos membros que dificilmente dobrarão a espinha
Mas não é apenas isso. O processo que culminou na vitória de Lula teve um “empurrão” dos institutos de pesquisas, que, desde 1º de janeiro de 2019, travam uma batalha contra a reeleição de Bolsonaro. Se o resultado das eleições dependesse dos especialistas do Datafolha, por exemplo, a vitória do petista seria consumada ainda no primeiro turno. A realidade, contudo, desfez as fantasias. O presidente da República não apenas conquistou a vaga no segundo turno como a eleição foi a mais apertada da história do país.
A partir de agora, surge uma oposição que promete não dar descanso aos ladrões do Erário. O PT, que sempre liderou os protestos pela derrubada dos presidentes eleitos, terá de enfrentar um “Fora, Lula” antecipado. O petista venceu a batalha nas urnas, mas uma parcela considerável da população não o absolveu moralmente. O ex-presidente foi condenado em três instâncias, por nove juízes diferentes, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. E a manobra jurídica do ministro Luiz Edson Fachin não reescreve a História.
Trincheira no Congresso
A direita também não pode se esquecer que tem um front no Congresso Nacional a ser pressionado. Nos próximos quatro anos, Lula será obrigado a lidar com algo que não havia em seus dois primeiros mandatos: uma oposição real no Parlamento.
Ainda que o petista consiga cooptar integrantes do centrão, o Parlamento tem novos membros que dificilmente dobrarão a espinha. Entre eles, estão nomes como os dos senadores eleitos Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Sergio Moro (União Brasil-PR) e Tereza Cristina (PP-MS) e os deputados federais Deltan Dallagnol (União Brasil-PR), Carla Zambelli (PL-SP) e Marcel van Hattem (Novo-RS), que, logo depois do primeiro turno das eleições, declararam oposição ferrenha a Lula.
É essa oposição que Bolsonaro deve e pretende liderar. O presidente e seu candidato a vice, o general Braga Netto, reuniram-se no início desta semana com o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto. No encontro, delinearam as diretrizes que vão conduzir os 58 milhões de eleitores que não votaram em Lula, além da bancada no Congresso, para uma oposição responsável e efetiva ao governo do PT.
Nos bastidores, Bolsonaro definiu que seguirá como o maior porta-voz das pautas conservadoras nos costumes e liberais na economia. Em 1º de janeiro, o presidente retornará ao cenário de oposição. A atual base política do chefe do Executivo também conta com o apoio de 260 deputados eleitos e mais de uma dezena de governadores. O presidente pode ter perdido a batalha, mas não a guerra.
As ruas deram o recado: a vida de Lula não será fácil. Os recentes protestos, em sua maioria ordeiros e pacíficos, são apenas um aperitivo dos próximos anos. A despeito das críticas, Bolsonaro foi capaz de mobilizar uma oposição aguerrida, combativa e alerta. Nesse cenário, será mais difícil a ocorrência de escândalos como Mensalão e Petrolão. Quem se acostumou a governar em sistema de cleptocracia terá dificuldade para administrar um país de outra maneira.
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Com informações de Cristyan Costa e Edilson Salgueiro, Revista Oeste