sexta-feira, 10 de julho de 2020

"Sociedade esperta, população estúpida", por Jeffrey Tucker

Os lockdowns deram uma marretada no conhecimento acumulado, que foi substituído pelas ordens burocráticas de um Estado policial

Vivemos a experiência mais bizarra de estupidez humana da minha vida, e talvez de gerações. Entre os aspectos mais estranhos disso está o fracasso quase universal por parte das pessoas comuns, e até dos ditos “especialistas” (os que o governo emprega, pelo menos), de internalizar qualquer coisa sobre as questões básicas dos vírus que minha mãe compreende, graças à mãe dela, que teve uma formação sólida nesse tema depois da 2ª Guerra Mundial.
Assim, por exemplo, todos os governos estão prontos para impor novos lockdowns caso os dados de infecção tomem a “direção errada”. Seguindo essa teoria, isso deveria ajudar a situação, certo? Como a reimposição das ordens de que as pessoas fiquem em casa ou a exigência de fechamento de academias vão misteriosamente intimidar o vírus a ir embora? “Fuja e se esconda” parece ter substituído qualquer coisa parecida com uma compreensão sofisticada do vírus.
Então decidi baixar Molecular and Cell Biology for Dummies (Biologia celular e molecular para principiantes, em tradução livre) só para checar se estou louco. Fiquei satisfeito ao constatar que o livro diz claramente que existem apenas duas maneiras de derrotar um vírus: imunização natural ou vacinas.
Um vírus é algo a ser combatido por um sistema imunológico por vez

O livro deixou totalmente de fora a opção que quase o mundo todo adotou em março: destruir negócios, forçar as pessoas a se esconder em casa e certificar-se de que ninguém chegue perto de ninguém. O motivo pelo qual o texto deixa isso de fora é que a ideia é essencialmente ridícula, tanto que foi divulgada de início como uma estratégia para preservar vagas em hospitais e apenas posteriormente modificada e transformada no princípio de que a maneira de vencer o vírus é evitar pessoas e usar quase um traje antirradiação.
Segue um trecho:
Durante toda a história registrada, os seres humanos fizeram uma dança mortal com os vírus. Os vírus do sarampo, da varíola, da poliomielite e da gripe mudaram o curso da história humana: o sarampo e a varíola mataram centenas de milhares de indígenas americanos; a poliomielite matou e paralisou pessoas, incluindo o presidente dos Estados Unidos Franklin Delano Roosevelt; e na epidemia de gripe de 1918 mais pessoas foram mortas que durante toda a 1ª Guerra Mundial.
Como a maior parte dos vírus ataca humanos, suas únicas defesas são a prevenção e o próprio sistema imunológico. Antibióticos não matam vírus, e cientistas não descobriram muitos medicamentos antivirais eficazes.
Vacinas são pequenas quantidades de vírus ou bactérias injetadas no corpo para educar o sistema imunológico. Elas funcionam aumentando as próprias defesas, de modo que você esteja pronto para combater a bactéria ou o vírus ao primeiro contato, sem que fique doente antes. No entanto, para algumas doenças virais não existem vacinas, e a única opçãé esperar desconfortavelmente que seu sistema imunológico vença a batalha.
Um vírus não é um miasma, uma pereba nem uma gosma vermelha, como no livro infantil O Gato de Chapéu. Não existe um caminho para travar, quanto mais vencer, uma guerra nacional contra um vírus. Ele não liga para fronteiras, ordens executivas nem títulos. Um vírus é algo a ser combatido por um sistema imunológico por vez, e nosso corpo evoluiu para poder fazer exatamente isso. As vacinas podem proporcionar uma vantagem ao sistema, por meio de um truque esperto. Mesmo assim, vai sempre haver outro vírus e outra batalha, e é assim faz centenas de milhares de anos.
Em vez de medo, uma calma administração
Se você leu o trecho acima com atenção, sabe mais do que saberia assistindo a cinquenta TED Talks do Bill Gates sobre vírus. Apesar de ter investido centenas de milhões de dólares para improvisar um plano global para combater micróbios, a própria compreensão dele parece não ter ido além de uma teoria de perebas, de fugir e esconder-se.
Existe outro nível de compreensão dos vírus que passou a ser observado nos anos 1950 e depois foi codificado nos 1970. Em muitos casos, nem todos precisam pegá-los para se tornar imunes, e nem todos precisam de vacina, se ela existir. A imunidade é obtida quando certa porcentagem da população contraiu alguma forma do vírus, com ou sem sintomas, e então o vírus efetivamente morre.
Isso tem implicações importantes porque significa que grupos mais vulneráveis podem se isolar pelos dias ativos do vírus e voltar à vida normal quando a “imunização coletiva” for realizada, com a infecção dentro de alguma parte da população não vulnerável. É por isso que todo conselho médico para os idosos tem sido evitar grandes aglomerações durante a temporada de gripe e é por isso que pegar e se recuperar para grupos não vulneráveis é uma coisa boa.
O que você obtém desse conselho sobre vírus não é medo, mas calma administração. Essa sabedoria — não ignorância, mas sabedoria — estava por trás da abordagem de “não causar dano” para a epidemia de poliomielite de 1949-52, a gripe asiática 1957-58 e a gripe de Hong Kong de 1968-69. Donald Henderson resumiu essa velha sabedoria lindamente: “Comunidades confrontadas com epidemias ou outros eventos adversos reagem melhor e com menos ansiedade quando o funcionamento social normal da comunidade é menos perturbado”.
“Só se aglomere se for para protestar contra o Trump!”
E foi o que fizemos pelos cem anos depois da catastrófica gripe espanhola de 1918. Nunca mais tentamos fechamentos nem lockdowns amplos exatamente porque eles deram errado nos poucos lugares onde foram aplicados.
A teoria das perebas tentou fazer um retorno com a gripe suína de 2009 (H1N1), mas o mundo estava ocupado demais lidando com a crise financeira; então a estratégia do pós-guerra de controle e mitigação do vírus prevaleceu mais uma vez, por sorte. Mas a tempestade perfeita veio em 2020, e uma nova geração de mitigadores de vírus teve sua chance de realizar um grande experimento social baseado em previsão e modelagem de computador.
De repente, temos esse novo vocabulário enfiado garganta abaixo, e todos temos de obedecer a exortações estranhamente arbitrárias. “Fique em casa! Não, espere, não entre!”, “Cuide-se, mas feche as academias!”, “Fuja do vírus, mas não viaje!”, “Não use máscara, espere, use máscara, sim!” (Agora podemos acrescentar: “Só se aglomere se for para protestar contra o Trump!”)
As pessoas começaram a acreditar em coisas loucas, como se fôssemos camponeses medievais. Por exemplo: se houver um grupo de pessoas ou se você ficar perto demais de alguém, o vírus malvado vai espontaneamente aparecer, e você será infectado. Ou que você pode ser um superespalhador secreto, mesmo que não tenha sintomas, e também que pode pegar o vírus encostando em quase qualquer coisa.
Em fevereiro parecíamos espertos. De repente, a estupidez tomou conta

Meu Deus, a quantidade de bobagens não científicas que foram espalhadas nesses três meses terríveis é espantosa. Mas é isso que acontece com qualquer pânico.
Agora, algo tem me incomodado de verdade nesses meses enquanto eu observava o incrível colapso da maior parte das liberdades que há muito menosprezamos. As pessoas foram impedidas de frequentar igrejas e escolas, comércios foram interditados, mercados foram fechados, governadores forçaram pessoas a se abrigar, emitindo ordens não de controle de doenças, mas de bombardeios aéreos, e máscaras se tornaram obrigatórias — tudo isso enquanto cidadãos que sempre pareceram espertos saltitavam ao redor uns dos outros como gafanhotos.
Meu maior choque foi descobrir quanta estupidez existe na população, em especial na classe política.
Peço desculpa pela defesa do uso de termo “estúpido”, mas está tecnicamente correto. Faço uso dele a partir de Albert Camus e de seu brilhante livro A Peste (1947). “Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria idiota’. E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre.”
É verdade.
Em fevereiro ainda parecíamos espertos. Tínhamos uma tecnologia incrível, filmes on demand, um smartphone no bolso para nos comunicar com quem desejássemos e revelar todo o conhecimento do mundo. Havia paz, mais ou menos. Havia prosperidade. Havia progresso. Nossos sistemas de saúde funcionavam. Parece que, apenas alguns meses atrás, estava tudo funcionando. Parecíamos inteligentes. Até, de repente, a estupidez tomar conta, ou é o que parece.
É um erro creditar as conquistas civilizacionais à inteligência individual ou à ação de bons governos

Na verdade, não éramos inteligentes como indivíduos. Nossos políticos eram burros como sempre, e uma ignorância em massa permeava a população — como sempre foi. O que era esperto em fevereiro era a sociedade e os processos que faziam a sociedade funcionar do bom e velho jeito.
“Por favor, explique.”
Farei isso.
Vamos considerar as análises sociais do economista e filósofo austríaco Friedrich August von Hayek (1899-1992). Seu tema principal é que o funcionamento da ordem social requer conhecimento e inteligência, mas nada desse conhecimento essencial subsiste dentro de qualquer mente individual, quanto mais de um líder político. O conhecimento e a inteligência necessários para que a sociedade se desenvolva estão, na verdade, descentralizados pela sociedade e se tornam inseridos e exemplificados em instituições e processos que gradualmente evoluem a partir de escolhas e ações livres de indivíduos.
Quais são essas instituições? Preços de mercado, cadeias de abastecimento, observações que fazemos de escolhas bem-sucedidas ou não de outros que nos dão informações para nossos hábitos e movimentos, nossas maneiras e convenções morais que funcionam como sinais sociais, taxas de juros que cuidadosamente coordenam o fluxo de dinheiro com nossas preferências temporais e tolerância a risco, e até à moral que governa nosso tratamento uns dos outros. Tudo isso se junta para criar uma forma de inteligência social que reside não em mentes, mas no próprio processo de evolução social.
O problema é que uma sociedade em bom funcionamento pode criar uma ilusão de que tudo acontece não por causa do processo, mas porque somos tão espertos ou talvez tenhamos líderes sábios com um bom plano. Parece ser assim; caso contrário, de que outra maneira teríamos nos tornado tão bons no que fazemos? O argumento principal de Hayek é que é um erro creditar à inteligência ou ao conhecimento individual, quanto mais a bons governos com líderes brilhantes, as conquistas civilizacionais; em vez disso, o verdadeiro crédito pertence a instituições e processos que ninguém em especial controla.
O que emergiu para assumir o lugar do conhecimento acumulado? A ignorância disseminada

“Para entender nossa civilização”, diz Hayek, “é preciso compreender que a ordem expandida resultou não da concepção ou intenção humanas, e sim espontaneamente: ela surgiu de maneira não intencional, conformando-se com certas práticas tradicionais e em grande parte morais, muitas delas de que os homens tendem a desgostar, cuja importância eles em geral não conseguem entender, cuja validade não podem provar, e que mesmo assim se espalharam bem rapidamente por meio de uma seleção evolutiva — o aumento comparativo da população e da riqueza — daqueles grupos que por acaso as seguiram.”
Os lockdowns deram uma marretada nesses processos, práticas e instituições. Eles os substituíram, quase do dia para a noite, por novas ordens burocráticas, de um Estado policial, que nos arrebanhou em casa e atribuiu arbitrariamente novas categorias designadas: procedimentos médicos opcionais versus não opcionais, serviços essenciais versus não essenciais, formas de associação admissíveis versus inadmissíveis, a ponto de medir o distanciamento que precisamos guardar uns dos outros. E, de uma hora para a outra, por ordem executiva, muitas das instituições e dos processos foram destruídos sob a bota da classe política.
O que emergiu para assumir seu lugar? É triste dizer, mas a resposta é a ignorância disseminada. Apesar de todo o conhecimento do mundo em nossos bolsos, vasto número de políticos e pessoas comuns regrediu a uma cognição pré-moderna de doença. As pessoas fizeram isso por medo e se tornaram súbita e estranhamente dóceis aos desígnios políticos. Tenho amigos que me contaram que são culpados disso lá atrás, acreditando que a morte em massa era iminente, então a única coisa a fazer era abrigar-se num lugar e obedecer aos éditos.
A aparente inteligência que tínhamos ainda em fevereiro de repente pareceu se dissolver. Uma forma melhor de entender isso é que todas as nossas instituições e práticas mais inteligentes foram destruídas, deixando apenas a completa idiotice em seu lugar.
A verdade é que nós, como indivíduos, provavelmente não somos muito mais espertos que nossos antepassados; a razão por que fizemos tanto progresso é a crescente sofisticação das ordens expandidas de Haeyk de associação, sinalização, acúmulo de capital e conhecimento tecnológico, e nada disso se deve a líderes sábios no governo e na indústria. É atribuível à sabedoria das instituições que construímos gradualmente ao longo das décadas, dos séculos e dos milênios.
Se tirarmos isso, vamos revelar aquilo que não queremos de fato ver.
Olhando em retrospecto, fico muito impressionado com o conhecimento e a percepção que a geração do pós-guerra tinha sobre mitigação de doenças. Isso foi ensinado nas escolas, passado por várias gerações e praticado no jornalismo e em questões de interesse público. Foi esperto. Alguma coisa aconteceu no século 21 que causou uma espécie de ruptura nessa cadeia de conhecimento médico, e, assim, sociedades ao redor do mundo se tornaram vulneráveis à presença de um novo vírus para ser  governadas por charlatães, embusteiros, polemistas de mídia e aspirantes a ditador.
Com o lockdown finalmente sendo flexibilizado, vamos ver o retorno do que parecem ser sociedades inteligentes, e a perda gradual de influência da estupidez. Mas não nos enganemos. Pode ser que não tenhamos aprendido nada com o fiasco que se descortinou diante de nossos olhos. Se as economias forem restauradas, finalmente, a suas versões anteriores, não vai ser porque nossos líderes de alguma forma derrotaram o vírus. O vírus foi mais esperto que todo mundo. O que vai consertar o que a classe política quebrou é a volta da liberdade para juntar as instituições e os processos que criaram a ordem expandida que faz com que todos nós nos sintamos mais inteligentes do que de fato somos.

Jeffrey Tucker é economista norte-americano, defensor da Escola Austríaca e do libertarianismo, associado do Action Institute e autor do livro Coletivismo de Direita (2017), publicado no Brasil pela LVM Editora.

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