sexta-feira, 31 de julho de 2020
"O STF tornou o Brasil uma piada sinistra", diz Modesto Carvalhosa
O jurista Modesto Carvalhosa critica a atuação do STF, diz que a Corte instituiu no país o crime político e propõe uma nova Constituição para reordenar o relacionamento entre as instituições
Na semana passada, em mais uma presepada na esfera do inquérito das fake news — uma completa aberração desde a origem —, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou o bloqueio de 16 contas de aliados do presidente Jair Bolsonaro no Twitter e 12 perfis do Facebook. O Supremo Tribunal Federal continua atentando contra a liberdade de expressão. Quanto a isso, não resta dúvida. Mas nem isso está fazendo “direito”. Não mexe com nomes que representam alto nível de risco. Importantes vozes da direita, até mais expressivas que as “interditadas”, seguem atuantes e ouvidas por milhões de cidadãos, em que pesem as investidas do STF.
Atento observador do Supremo brasileiro, o jurista paulistano Modesto Souza Barros Carvalhosa, de 88 anos, um dos mais prestigiados nomes do direito no país, diz que a Corte instituiu uma espécie de “AI-5 sem data para terminar”. Carvalhosa vê Alexandre de Moraes como “o ministro inquisidor-geral da nação”. E a presidência de Antonio Dias Toffoli, para o jurista, é “uma página negra na história do STF”.
Com intensa atuação política, o advogado especialista em Direito Societário é sempre chamado a contribuir para o debate público. Apresenta costumeiramente análises precisas e contundentes de quem não deve e não tem nada a temer. “O STF tornou o Brasil uma piada sinistra”, diz Carvalhosa. Em 2019, juntamente com dois colegas, ele ingressou junto ao Senado Federal com um pedido de impeachment contra o ministro do STF Gilmar Mendes.
Carvalhosa é autor de várias obras — entre elas, Da Cleptocracia para a Democracia em 2019: um Projeto de Governo e de Estado e O Livro Negro da Corrupção, este, premiado com o Jabuti de Literatura Jornalística em 1995.
O jurista defende uma mudança estrutural na vida política brasileira e uma nova Constituição para que o Estado volte a servir o povo: “Hoje, o Estado domina completamente a coletividade e impede o desenvolvimento do país, que é um dos mais atrasados do mundo em todos os planos, em tudo”.
Carvalhosa conversou com a Revista Oeste para a seguinte entrevista.
O STF tem autonomia para cancelar contas de cidadãos em redes sociais?
O Supremo Tribunal Federal não tem jurisdição para cancelar contas. Cabe ao Instagram, ao Facebook e ao Twitter selecionar o que será publicado. É como em um jornal ou em uma revista: só se publicam as notícias que a redação considera que devem ser veiculadas. Portanto, é da responsabilidade privada dos próprios veículos bloquear essas contas com fake news, e não do STF. A propósito, fake news não têm tipificação penal nenhuma. A tipificação é aquela tradicional: calúnia, injúria e difamação. Portanto, são crimes de ação privada que não cabem na competência nem da Procuradoria-Geral da República nem do Supremo Tribunal Federal. Quem cancela contas é o veículo para a sua própria preservação e reputação. É o que as plataformas devem fazer, e parece que já têm feito.
Qual sua posição acerca do inquérito das fake news?
A partir de março de 2019, o STF resolveu penalizar os crimes de opinião e a liberdade de expressão, ou seja, decidiu restaurar o crime político em nosso país, como nos tempos do regime militar. O STF dedica-se a atemorizar a cidadania e inibir o direito de crítica à conduta das autoridades e de seus familiares. Se você falar mal dos familiares desses ministros, vai pegar um processo brutal, sua casa será invadida, você vai prestar depoimentos na Polícia Federal porque falou mal da ‘familinha’ dos ministros. Então, essa é a democracia que temos no Brasil. Esse inquérito do fim do mundo pune os crimes de opinião e de liberdade de expressão, passando a ser mera retórica o artigo 5º da Constituição, que trata da livre manifestação de pensamento e da inviolabilidade do domicílio. O Supremo Tribunal Federal critica o pessoal que quer o AI-5 — aliás, com toda a razão, porque ninguém pode querer o AI-5 —, mas eles, pela portaria 69 [que deu origem ao inquérito das fake news], instituíram o AI-5 no Brasil. Esse terrorismo de Estado, esse regime político de exceção, é imposto à cidadania. Nós temos o AI-5 sem data para acabar.
O que, eventualmente, poderia ser considerado fake news ou ofensa ao Supremo?
Qualquer crítica pessoal ou familiar aos ministros será considerada fake news. Ocorre que fake news não é delito tipificado no Código Penal, não podendo ser objeto de ação criminal alguma. Esses ministros do Supremo Tribunal Federal são ao mesmo tempo vítimas, investigadores, acusadores e julgadores do mesmo fato. Como é que você se diz vítima de um crime que não existe? E se faz investigação, acusa e julga um crime que não existe?
Mas agora há um inquérito aberto pela Procuradoria-Geral da República para apurar ações relacionadas a “manifestações antidemocráticas”…
A democracia aguenta desaforos, inclusive críticas sobre suas próprias instituições quando elas não funcionam. E, no Brasil, não funcionam. A crítica às instituições democráticas é da natureza da própria democracia. No entanto, agora é crime, segundo o tal do [ministro Antonio Dias] Toffoli, o tal do Alexandre de Moraes. Trata-se de crime político o que eles instituíram nesse inquérito secreto 4828. A liberdade de opinião do regime democrático não é mais garantida. Então, se você atacar as instituições, quando considera que elas não funcionam, isso é crime. Esses sinistros inquéritos estão instalados em plena democracia, na assim chamada democracia brasileira.
Como o senhor avalia a atuação do ministro Alexandre de Moraes nesses inquéritos?
O Alexandre de Moraes é o ministro inquisidor-geral da nação. Ele se outorgou o poder ilegítimo de investigar secretamente todos os cidadãos que ousem criticar os ministros daquela Corte e atacar as instituições republicanas, que eles mesmos quebraram. A partir de março de 2020, esses inquéritos secretos foram estendidos às demais autoridades ofendidas do Senado e da Câmara, o tal do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e o Botafogo, Rodrigo Maia. Se falar mal do Davi Alcolumbre ou do Botafogo, Rodrigo Maia, você já tem inquérito, porque é contra as instituições. O STF tornou este país uma piada sinistra.
“Temos no Brasil o Supremo Tribunal da Impunidade”
Qual a sua opinião sobre a decisão do STF de manter a possibilidade de decisões monocráticas contra atos de outros poderes? [Por 10 votos a 1, o STF decidiu em 1º de julho que os ministros continuariam a decidir sozinhos sobre questões que interferissem no Executivo e no Legislativo. O ministro Marco Aurélio de Mello foi voto vencido.]
Trata-se de uma conduta absolutamente contrária ao regimento interno do próprio STF, que tem sido menosprezado pelos ministros daquela Corte, criando 11 cortes judiciárias, cada uma com sua cabeça e suas preferências políticas e que decidem hoje em dia o destino político do país.
Como o ativismo judicial interfere na atuação do STF, principalmente no direito criminal?
Esse ativismo judicial em matéria criminal ocorre por força da Constituição de 1988, que deu aos tribunais superiores poderes que eles não conseguem nem sequer absorver. São poderes quase que de delegacia de polícia, misturado com Ministério Público, com competências de primeira, segunda, terceira e quarta instâncias. O Supremo Tribunal Federal é hoje em dia nada mais do que uma máquina, uma fábrica de habeas corpus, atitude que deve ser tomada geralmente na primeira instância ou no máximo na segunda. Eles fabricam habeas corpus todo dia. E a favor de quem? A favor dos negros, pobres e moradores das periferias? Não! São protegidos por essa fábrica de habeas corpus os políticos e os empresários que estão ligados à corrupção e a organizações criminosas. O Supremo Tribunal Federal hoje é o grande espaço onde todos os delinquentes de alto coturno encontram uma maneira de não continuarem presos ou não serem presos. Enfim, é o Supremo Tribunal da Impunidade.
Seria possível eliminar o ativismo judicial?
A única maneira é uma nova Constituição. Trato do tema no livro que lançarei em novembro [Uma Nova Constituição para o Brasil — De um País de Privilégios para uma Nação de Oportunidades (Editora Revista dos Tribunais)]. O novo texto constitucional precisa instituir que as nomeações para o Supremo Tribunal Federal sejam feitas por antiguidade. Funcionaria assim: os ministros do Superior Tribunal de Justiça mais antigos ocupariam os cargos de ministros do STF por um período de oito anos, e não mais para a eternidade. O senhor Toffoli, por exemplo, ficará lá até seus 75 anos. Esse tipo de permanência eterna dentro do Supremo deve acabar. Essa proposta também valeria para tribunais superiores em geral. Essa é a solução para acabar com esse ativismo judicial que temos hoje, que é extremamente prejudicial ao povo brasileiro.
“O ministro Toffoli na presidência do STF cometeu todos os crimes de responsabilidade que se pode imaginar”
Como o senhor recebeu a revelação de que Marcelo Odebrecht disse à Procuradoria-Geral da República que seu grupo empresarial mantinha um acerto ilícito com o então advogado-geral da União, Antonio Dias Toffoli?
Fico impressionado com a pouca repercussão que esse escândalo nacional, absoluto, teve na imprensa escrita e televisiva. Não se falou praticamente nada, como se fosse um assunto de pouco interesse público. Na realidade, é um escândalo total que deveria, inclusive, ter levado o Senado a imediatamente colocar em plenário um pedido de impeachment contra esse ministro, coisa que não aconteceu. O Senado não reagiu. A Câmara não reagiu. A imprensa também não reagiu, e assim as coisas continuam como sempre estiveram.
De que modo o ministro Toffoli vem conduzindo a presidência da Corte?
O ministro Dias Toffoli na presidência do STF cometeu todos os crimes de responsabilidade que se pode imaginar, além dos de prevaricação e crimes comuns. Tudo está relatado nos pedidos de impeachment que existem contra ele no Senado Federal. É claro que o ministro acrescentou neste ano de 2020 outros delitos também no plano da responsabilidade e da prevaricação, demonstrando que é um político que está ali para proteger deputados, senadores, ministros, presidente da República e familiares das garras da Justiça. A presidência de Dias Toffoli é, vamos dizer claramente, uma página negra na história do STF, que é uma das grandes instituições da República brasileira, sem a qual não podemos nunca passar. O STF tem de existir, tem de funcionar, mas não pode ter na sua composição pessoas desse jaez. É um absurdo o que Dias Toffoli fez na presidência do STF, o elenco de todos os malfeitos que ele praticou. Talvez fosse o caso de um aditamento aos pedidos de impeachment dele pelas condutas que teve no fim de 2019 e, agora, nesse primeiro semestre 2020.
“Luiz Fux tem se alinhado ao grupo dos cinco ministros que realmente defendem a Justiça”
O que a sociedade brasileira pode esperar da condução do STF com o ministro Luiz Fux na presidência da Corte?
O povo brasileiro tem uma grande esperança na presidência do ministro Luiz Fux. Não só por ser o único ministro que restou naquela casa que vem da carreira da magistratura, homem de grande competência jurídica, mas pela idoneidade que tem demonstrado claramente em todos os votos proferidos no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral. Naquele caso histórico em que a Dilma e o Temer foram absolvidos por excesso de provas, ele foi veementemente contra a absolvição. O ministro tem votado favoravelmente à prisão em segunda instância. Em todos os casos que o Supremo tem julgado nesses últimos dois anos que se referem à proteção dos corruptos e à impunidade, o ministro Luiz Fux tem se alinhado ao grupo dos cinco ministros que realmente defendem a Justiça e o povo brasileiro dessa claque de políticos sórdidos que dominam este país.
O senhor protocolou um pedido de impeachment contra Gilmar Mendes. Qual seria o crime cometido pelo ministro?
Ingressamos com um pedido de impeachment contra o ministro Gilmar Mendes baseado em três condutas dele: na vida privada, empresarial e como juiz. Na vida privada, porque ele, realmente, exerce ou exerceu atividades políticas muito intensas, na defesa do governador de Mato Grosso, que é um notório corrupto, e de seus secretários, por exemplo. No plano político, ele tem uma promiscuidade enorme com os réus do próprio Supremo Tribunal Federal. Como juiz, ele solta qualquer camarada que tenha boa projeção política ou empresarial. Se for um grande empresário, como aquele “Rei do Ônibus”, ele é solto imediatamente. Então, ele é o soltador-mor da nação. Todos os políticos e grandes empresários corruptos são soltos pelo Gilmar Mendes. A figura de Gilmar Mendes não constrói nada, só destrói as nossas esperanças no Brasil.
Leia mais sobre o tema nesta edição nos artigos de J. R. Guzzo, Guilherme Fiuza e Augusto Nunes.
Revista Oeste
Afonso Marangoni, Revista Oeste