sexta-feira, 31 de julho de 2020
"Caminhamos sonâmbulos para a segregação racial", por Fraser Myers, da Spiked
A nova política de raça apresenta-se como progressista e antirracista, mas acaba por segregar os indivíduos e impor limites à miscigenação
Oempoderamento virou o mundo de pernas para o ar. Hoje, são aqueles que pensam neles mesmos como antirracistas que estão adotando visões segregacionistas.
O policiamento empoderado das fronteiras raciais ocorre há algum tempo e à vista de todos, embora tenha enfrentado pouco desafio. Inicialmente, sua expressão mais óbvia no mainstream foi o patrulhamento da arte e da cultura. Celebridades e artistas foram expostos e ridicularizados pelo pecado da “apropriação cultural”. O uso de penteados, moda, comida e música supostamente “negros” por pessoas brancas (e até certos não brancos) foi denunciado como uma forma de roubo cultural. Aqueles que se afastaram além de seus limites raciais receberam o alerta: “Fique na sua”.
Agora, mais ideias obscuras sobre “branquitude” e “cultura branca” se enraizaram na pauta contemporânea e seus limites se tornam mais nítidos. Em 2018, o jornal britânico The Guardian tentou e falhou em definir com precisão “cultura branca”. “Se a branquitude não toma forma, as estruturas concretas que a moldaram (e geralmente se beneficiam dela) também permanecem invisíveis”, escreveu a jornalista especializada em análise de dados Mona Chalabi. Examinando os dados, Chalabi descobriu que os brancos gostam de artes, vegetais, álcool e laticínios. No entanto, ela estava convencida de que essa nebulosa cultura branca era uma força para o mal, canibalizando todas as outras culturas raciais para seus próprios fins.
O fatalismo racial levou alguns “antirracistas” a adotar ideias explicitamente segregacionistas
Contudo, após os recentes protestos do movimento Black Lives Matter, o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana apresentou uma lista muito mais definitiva dos “aspectos e premissas da branquitude e da cultura branca nos Estados Unidos”. A lista, publicada em meados de julho, poderia facilmente ter sido elaborada por um supremacista branco. Enquanto alguns dos aspectos de branquitude destacados são bastante prosaicos, como um estilo de vida que prefere uma família tradicional e segue o cristianismo, muitas das inclusões são totalmente racistas quando se consideram seus opostos. Por exemplo, se “polidez”, “trabalho árduo” e “pensamento racional e objetivo” são marcas da “branquitude”, o que isso diz sobre as pessoas que não são brancas? Devemos concluir que são rudes, preguiçosas e irracionais?
Mais significativa é a suposição subjacente — agora amplamente difundida por nossas elites empoderadas — de que brancos e não brancos devem não apenas ser mantidos com padrões diferentes, mas também com valores diferentes. Essas divisões intransponíveis não se baseiam em visões racistas da velha escola da supremacia branca, mas em um profundo pessimismo sobre as relações raciais. Como ilustra a sanha derrubadora de estátuas dos manifestantes do Black Lives Matter, agora é comum ver as minorias étnicas acorrentadas para sempre aos horrores passados da escravidão e do colonialismo (daí a necessidade de destruir simbolicamente o passado). Apesar de todas as evidências em contrário, e apesar de todos os ganhos concretos dos movimentos antirracistas históricos, a narrativa empoderada insiste que nada realmente mudou para os negros.
Esse fatalismo racial levou alguns “antirracistas” a adotar ideias explicitamente segregacionistas. Novamente, essas ideias não são enquadradas em termos de superioridade racial, mas quase como uma espécie de espaço seguro de um suposto mundo irremediavelmente racista. No Reino Unido, um acadêmico planeja estabelecer a Universidade Negra Livre, que pode atuar como “um espaço de comunidade e cuidado para estudantes negros, conectando-os a terapeutas negros, conselheiros e curandeiros da comunidade para oferecer apoio de vários tipos”. Mesmo em instituições estabelecidas como a Universidade de Oxford, a noção de que estudantes negros só podem se relacionar com outras pessoas negras é generalizada — sejam professores ou conselheiros negros no presente ou autores negros no passado. Por exemplo, nas últimas semanas, a reitora Louise Richards comprometeu-se a trazer conselheiros negros de fora da universidade para atender às necessidades de saúde mental dos estudantes negros.
No Brasil, a Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, tem 90% de alunos negros e, entre seus valores declarados, anuncia: “Estímulo ao diálogo de negros e não negros na realidade brasileira”. Que realidade é essa em que negros e brancos do país não se comunicam, apenas a direção da universidade pode esclarecer.
Mais de 75 faculdades norte-americanas ofereceram eventos de início de ano letivo segregando negros e brancos
A atitude segregacionista começa a fazer-se presente também nos espaços físicos. Muitas universidades nos Estados Unidos oferecem acomodações e instalações recreativas exclusivas para negros. Em 2017, a Harvard sediou sua primeira cerimônia de graduação somente para negros. Um relatório de 2019 constatou que mais de 75 faculdades norte-americanas ofereciam eventos de início de ano letivo segregando negros e brancos. Obviamente, isso não é nada parecido com os males do apartheid ou com as leis de Jim Crow, que impuseram a segregação racial no sul dos Estados Unidos. Porém, é surpreendente que a lógica supostamente progressista da política identitária e do espaço seguro do câmpus também tenda à separação física das pessoas de acordo com sua raça.
Essa visão hiper-racializada do mundo foi promovida por todos os lados — na educação, na mídia e até nas grandes corporações. De forma perturbadora, também afeta claramente como algumas pessoas se veem e enxergam seus relacionamentos mais íntimos. Escrevendo no jornal The New York Times em 2017, um professor de direito perguntou: “Meus filhos podem ser amigos de pessoas brancas? Ensinarei meus meninos a ter profundas dúvidas de que a amizade com os brancos seja possível”.
No início deste mês, durante uma reunião via Zoom de um Conselho de Educação Comunitária da cidade de Nova York, um conselheiro branco passou uma reprimenda em uma criança negra que estava em seu colo (o bebê era sobrinho de um amigo). O gesto inocente provocou uivos de indignação. “Dói nas pessoas ver um bebê negro levar uma bronca no colo de um branco”, gritou uma mulher, membro do conselho, indignada. “Isso é prejudicial. Isso faz com que as pessoas chorem. Isso faz com que as pessoas saiam da nossa reunião.” Ela deixou clara a origem de sua ira. “Leia White Fragility e How to Be an Anti-Racist!” Esses dois livros (“Fragilidade Branca” e “Como Ser um Antirracista”) lideraram as listas de best-sellers durante as manifestações do Black Lives Matter. Vêm sendo ensinados em escolas e usados em ambientes de trabalho para treinar as pessoas a ser “antirracistas”. Ambos promovem uma hipersensibilidade a raça e um fatalismo extremo.
Os pais de crianças miscigenadas, diz a especialista, precisam “ser humildes e aprender que são racistas”
Essa visão das raças como distintas e divididas é particularmente prejudicial para miscigenados. No Reino Unido, as raças miscigenadas são o maior grupo étnico em crescimento. As pessoas comuns estão vivendo numa sociedade multiétnica. Muitos indivíduos não se incomodam com a diferença racial e estão começando famílias miscigenadas em escala sem precedentes.
Mas, para os empoderados, isso simplesmente não funciona — pelo menos não sem a intervenção deles. Em seu best-seller Por Que Não Converso Mais com Pessoas Brancas sobre Raça, a jornalista e escritora britânica Reni Eddo-Lodge insiste que a existência de pessoas miscigenadas “torna as relações raciais mais complicadas, e não menos” — o que significa que torna a consciência racial mais necessária. “O privilégio branco nunca é mais pronunciado do que em nossos relacionamentos íntimos, amizades próximas e em nossa família”, ela escreve. Eddo-Lodge, em seguida, cita um entrevistado miscigenado que foi claramente influenciado pela política empoderada da raça: “Agora, quando vejo um casal inter-racial, eu me sinto desconfortável”. Os pais de crianças miscigenadas, ela diz, precisam “ser humildes e aprender que são racistas, mesmo que pensem não ser”.
A autora não observa como é devastador para uma criança miscigenada ter um pai branco que se vê como um racista. Contudo, alguns pais aceitam obrigatoriamente essa condição. “A supremacia branca vive dentro de mim”, escreveu recentemente um dos pais empoderados, cuja bizarra mea culpa se tornou viral. É difícil exagerar quão cruel tudo isso é. Quando até os relacionamentos mais íntimos são envenenados pela necessidade de ver a raça em toda parte, o resultado é que os pais se sentem alienados dos próprios filhos — e vice-versa.
A nova política de raça pode se apresentar como progressista e antirracista, mas é tudo menos isso. Procura explicitamente dividir as pessoas por raça. Se não nos posicionarmos contra isso, ou se não oferecermos uma alternativa universalista e daltônica, iremos caminhar para uma nova segregação.
Leia também nesta edição a coluna de Ana Paula Henkel e a entrevista com o sociólogo anglo-húngaro Frank Furedi
Fraser Myers é redator da Spiked
Revista Oeste