sexta-feira, 31 de julho de 2020
"Uma Corte infestada de bobos", por Augusto Nunes
Os atuais ministros do Supremo ameaçam expropriar o asterisco hoje ocupado pela Junta dos Três Patetas
No começo dos anos 50, os alunos da 4ª série do Grupo Escolar Domingues da Silva foram submetidos a uma prova que incluía a seguinte questão: quais são os três Poderes da República? A professora Mathilde Menon compreendeu que uma resposta tecnicamente errada fora a mais verdadeira, sensata e sincera. Não só decidiu considerá-la certa como guardou para sempre a folha de papel em que o menino de 11 anos rabiscara os três Poderes: Baixinho, Gordinho, Simpático. Duas características físicas e um traço de personalidade bastaram para que todos identificassem a figura descrita com admirável concisão: Getúlio Vargas, eleito em 1950. Para aquele garoto de Taquaritinga, o ardiloso gaúcho mandava no Brasil desde sempre. Mandava mais que todos os Poderes juntos.
Getúlio era naquele momento o chefe do Executivo de um Brasil redemocratizado em 1945, quando a queda do Estado Novo resgatou o Judiciário e o Executivo da UTI onde agonizavam desde a decretação em 1937 da abjeção autoritária. Transformado em ditador, o líder da Revolução de 30 manteve o Congresso fechado por oito anos e reduziu o Supremo Tribunal Federal a puxadinho do Palácio do Catete. Nenhum governante nomeou tantos ministros do STF quanto aquele gaúcho risonho, de baixa estatura e silhueta implorando por jejuns: 21. Os nomeados foram dispensados pelo padrinho de sabatinas no Senado — e também da tarefa de eleger o presidente da Corte, escolhido pessoalmente por Getúlio. Quem foi criança naquela época tinha o direito de acreditar que todo o poder emanava daquele homem baixinho, gordinho e simpático. E por ele era exercido.
Confrontado com a mesma pergunta, o que responderiam hoje os brasileiros que vão chegando à pré-adolescência? Caso dessem a resposta oficialmente certa, estariam todos errados. Seguem em funcionamento os três Poderes inerentes ao Estado Democrático de Direito, mas o Supremo Tribunal Federal se acha mais poderoso que os outros. Pelo que anda fazendo o Timão da Toga, sobretudo seus mais impetuosos artilheiros, a Junta que assumiu o comando do país entre o derrame sofrido por Costa e Silva e a posse de Emilio Medici terá logo expropriado o asterisco que ocupa nos livros de História. A trinca de ministros militares ficou conhecida como os três patetas. O STF tem meia dúzia de idiotas juramentados. Os outros vivem derrapando no perigoso terreno da galhofa.
Só existem figuras perfeitas em autobiografias desprezíveis ou panegíricos redigidos por vassalos
Já tratamos aqui de Celso de Mello — o Decano, o Pavão de Tatuí, o Rui Barbosa em compota —, no momento empenhado em consolar-se da aposentadoria com a decretação do impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Gilmar Mendes, a Maritaca de Diamantino, retomou a quarentena depois do troco que levou das Forças Armadas por acusá-las de cúmplices do genocídio promovido por Jair Bolsonaro em aliança com o vírus chinês. Ricardo Lewandowski também está na muda. Mas falam e agem por eles e todos os outros dois bucaneiros de capa preta: Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Esses não perdem uma única chance de mostrar que no Brasil qualquer nulidade pode virar superjuiz.
Há alguns anos, a direção da revista Veja acrescentou aos critérios que regiam contratações de profissionais a exigência embutida numa pergunta singela: se o candidato à vaga se juntasse a uma roda, a conversa ficaria melhor ou pior? A partir daí, só foram anexados à redação os que melhoravam a conversa. Anexei outro quesito num jornal que dirigi. Só entrava quem soubesse rir de si próprio, tratar-se com ironia, entender que só existem figuras perfeitas em autobiografias desprezíveis ou panegíricos redigidos por vassalos. Quem se levava a sério o tempo todo que procurasse algum panteão. O clima na redação ficou bem melhor.
Temos no STF, portanto, um defeito de fabricação insanável: os ministros se acham de tal forma predestinados ao Egrégio Plenário que muitos só pararam de chorar no berçário quando alguma enfermeira substituiu a fralda por uma toga em miniatura. Nenhum deles sequer desconfia que, em nações civilizadas, só entrariam numa Corte Suprema se caprichassem no papel de réu. Essa disfunção, somada ao cotidiano confinado numa realidade paralela, ajuda a entender a existência de um inquérito das fake news. Parteiro da maluquice que pretende erradicar a mentira do que se divulga no Brasil, Alexandre de Moraes hoje acumula quatro funções: é o detetive que tudo descobre em dois minutos, o delegado que só prende, o promotor que invariavelmente acusa e o juiz que não absolve ninguém.
Os participantes do teatro do absurdo fingiram entender o que significa “ser editor da nação”
Surgido o Ministro da Verdade, faltava o Editor do Brasil. Não falta mais. Nesta semana, numa conversa inverossímil com jornalistas, Dias Toffoli protagonizou uma aula magna de imbecilidade. “O Judiciário existe para dirimir conflitos”, recitou a platitude para desandar na decolagem. “O Supremo atua como editor de uma nação inteira no caso do inquérito das fake news”. Como é que é?, deixaram de exclamar os jornalistas. Toffoli animou-se com a docilidade da plateia. “Todo órgão de imprensa tem censura interna”, mentiu. “O seu acionista ou o seu editor, se ele verifica ali uma matéria que ele acha que não deve ir ao ar porque ela não é correta, ela não está devidamente checada, ele diz: ‘Não vai ao ar’. Aí o jornalista dele diz: ‘Mas eu tenho a liberdade de expressão de colocar isso ao ar’. Entendeu?”
Os participantes do teatro do absurdo fingiram que sim. Também fizeram de conta que não estavam testemunhando uma selvagem sessão de tortura imposta à língua portuguesa. “Não é à toa que todas as empresas de comunicação têm códigos de ética, de compromisso. Nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.
Não é pouca coisa. Não estranhem se o Editor do Brasil começar a reforma do país com a transferência do Supremo para o Palácio do Planalto.
Revista Oeste