sexta-feira, 10 de julho de 2020

"Sereias levam as crianças pelo caminho trans", por Jo Bardosch, da Spiked

A história da instituição que afirma estar ajudando crianças que se identificam com o gênero oposto ao de nascimento. Mas não é bem assim

Com ar de pastora evangélica, Susie Green caminha pelo palco com suas botas punk rock. Ela explica ao público do Ted X como seu filho Jack se tornou sua filha Jackie.
Susie é uma ex-consultora de TI e CEO da Mermaids (Sereias, em tradução literal do inglês), uma instituição de caridade que se anuncia como apoiadora de “crianças e jovens que mudam de gênero e suas famílias”. A história da transição de Jack para Jackie é frequentemente contada por Susie para promover sua organização. Nos quatro anos desde que assumiu o comando, a Mermaids ganhou destaque. Firmou parcerias com a Starbucks. Ganhou o apoio de grandes estrelas da mídia, incluindo o príncipe Harry, a atriz Jameela Jamil e a congressista dos Estados Unidos Alexandria Ocasio-Cortez. Mas perguntas sobre a influência da Mermaids entre a classe médica, sua resposta aos críticos e a suposta ciência por trás da abordagem do indivíduo “nascido no corpo errado” começam a manchar a imagem cultivada pela entidade.
Vencedora de um National Diversity Award, Susie Green é a própria imagem de uma mãe solidária. Ela diz que inicialmente pensou que “tinha um menino muito sensível e bastante efeminado que provavelmente era gay”. Lembra como, quando menino, Jack foi obrigado a se envergonhar de sua preferência por roupas e brinquedos femininos por seu pai. A certa altura, perguntou à avó: “Você pode comprar para mim a Barbie Rapunzel? Mas não conte para meus pais, tá bom?”.
Susie faz piadas como evidência de que seu filho nasceu com um “cérebro de menina em um corpo de menino”. Contudo, a maioria das pesquisas sugere que as crianças que exibem esse comportamento são mais propensas a ser atraídas pelo mesmo sexo, e que a puberdade geralmente alivia sentimentos de incompatibilidade entre corpo e cérebro. Apesar disso, a Mermaids tem sido tão bem-sucedida na promoção da narrativa do “corpo errado” que hoje é referenciada por organizações em todo o Reino Unido, da BBC ao NHS, o Sistema Único de Saúde britânico.
Um medicamento para câncer de próstata é utilizado no tratamento de “disforia de gênero”

A instituição se anuncia simplesmente como um serviço de apoio a crianças, jovens e famílias. Mas há uma dimensão política nisso. Suas recomendações ao governo incluem: o direito das crianças de agir legalmente, sem o consentimento dos pais, contra escolas que não se referem a elas pelos nomes e pronomes escolhidos; o fornecimento de terapia de reposição hormonal para crianças menores de 16 anos; e o rastreamento rápido de consultas e intervenções físicas para jovens na puberdade.
É compreensível que uma criança que se percebe diferente apegue-se à ideia de que realmente é do sexo oposto. Na escola secundária, a filha de Susie, Jackie, usava uniforme e cabelo comprido como as meninas. Depois que Jackie foi intimidada e ficou deprimida, Susie buscou ajuda on-line e encontrou um médico norte-americano que estava disposto a prescrever medicamentos para retardar a puberdade — os chamados bloqueadores de puberdade ou de hormônios, na época não liberados no Reino Unido. De acordo com Susie, o tratamento foi “mudança de vida e salvamento”, e ela inequivocamente defende sua posição, argumentando que “a intervenção médica é muito importante, especialmente para adolescentes que já estão na puberdade”.
A Mermaids compartilha essa posição, declarando em seu site que os “bloqueadores simplesmente dão tempo para que as crianças reflitam; elas podem parar a qualquer momento e uma puberdade normal associada ao sexo a que foram atribuídas no nascimento será retomada”. Porém, a segurança de tais drogas foi questionada por especialistas, incluindo o professor da Oxford Michael Biggs. Após uma investigação sobre o uso de bloqueadores pelo Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero do NHS, Biggs revelou que, longe de aliviar o sofrimento, os bloqueadores de puberdade “exacerbaram a disforia de gênero”. Após um ano de tratamento, segundo o estudo, houve um aumento significativo de relatos nos pacientes que nasceram do sexo feminino que “deliberadamente tentaram se machucar ou se matar”.
O medicamento mais comumente prescrito para interromper o desenvolvimento foi licenciado pela primeira vez para tratar câncer de próstata em estágio terminal. Seu uso no tratamento de disforia de gênero é off-label (não segue as indicações homologadas para o fármaco) e ainda não se sabe o impacto a longo prazo nas crianças. Biggs argumenta que esse uso experimental de bloqueadores de puberdade pelo sistema de saúde atendeu a pressões da Mermaids e de outras “organizações transgênero”. No início deste mês, foi relatado por James Kirkrup, na revista Spectator, que “o NHS mudou silenciosamente sua orientação trans para refletir a realidade” em relação aos possíveis efeitos a longo prazo dos “bloqueadores de puberdade”.
Aniversário de 16 anos na sala de cirurgia para a realização da mudança de sexo

Susie afirma que Jackie havia solicitado a cirurgia de reatribuição sexual aos 6 anos de idade. Dez anos depois, Susie levou Jackie à Tailândia para uma cirurgia, que agora é ilegal para quem tem menos de 18 anos — no Brasil, terapias hormonais só estão liberadas a partir dos 16 anos, e cirurgias, a partir dos 18. O 16º aniversário de Jackie foi passado na operação de sete horas. Susie se lembra rindo em um vídeo do YouTube que o uso de drogas para suprimir a puberdade deixou para os cirurgiões “pouco com que trabalhar” quando se tratava de inversão peniana — o processo pelo qual um pênis é cortado e remodelado para se parecer com a genitália feminina externa. Indiscutivelmente, tendo colocado seu filho no caminho trans, Susie se posiciona pessoalmente na defesa da transição juvenil entre sexos.
Mas a Mermaids nem sempre foi tão estridente em defender a intervenção médica. De fato, quando a instituição de caridade foi fundada, em 1995, os blogueiros em seu site, identificando-se como jovens transexuais, frequentemente pediam cautela. Um jovem de 22 anos, escrevendo sob o nome de Sian, alertou:
“Você precisa ser extraordinariamente maduro para a sua idade para poder fazer uma transição estável cedo. As pessoas que ainda estão crescendo, como é perfeitamente normal, simplesmente não são estáveis o suficiente nem estão preparadas, com as faculdades mentais, para poder lidar com o estresse da transição. Muitos jovens transexuais, com mais ou menos a minha idade, parecem pensar profundamente que alguém tem uma solução mágica para os seus problemas. Como tudo na vida adulta, isso não é verdade”.
Para os leitores em 2020, a ideia de uma criança “transexual” parece perturbadora, embora a mudança na terminologia para “transgênero” faça pouco para alterar a desconfortável realidade de que ser trans era um conceito adulto aplicado apenas recentemente às crianças.
A organização incentiva os pais a deixar-se guiar pelos filhos e não questioná-los

Aconselhamento preventivo, como o oferecido por Sian, hoje seria considerado transfóbico pelos apoiadores da Mermaids. Afinal, a instituição de caridade agora defende a abordagem “apenas afirmativa”. Nos vídeos produzidos de maneira esperta, os pais são incentivados a não questionar a identificação de seus filhos como sexo não binário ou oposto, mas sim a afirmar; e advogar ativamente pelos filhos e ser guiado por eles. A entidade também alerta para a crueldade do mundo exterior, de médicos hostis e escolas antipáticas. Contra tudo isso, oferece o santuário da “comunidade trans” quase mística.
O aspecto mais preocupante do “canto das sereias” é o uso de estatísticas de suicídio. A Mermaids afirma que 48% dos jovens transgênero tentaram suicídio em algum momento no passado. Uma investigação da Transgender Trend revelou que esse achado é de um estudo de 27 jovens trans selecionados, 13 dos quais relataram ter tentado suicídio em algum momento anterior da vida. Nuno Nodin, o principal acadêmico por trás da pesquisa, explicou que as descobertas foram mal interpretadas e que isso é comum “quando a pesquisa é usada por não cientistas no contexto de suas próprias agendas”. Infelizmente, essa nuance é perdida durante as apresentações da Mermaids, em que a estatística é transmitida a públicos horrorizados.
Diferentemente da Mermaids, a Transgender Trend é uma organização pequena, sem acordos corporativos nem o apoio de grandes celebridades. Seu objetivo é apenas “questionar a narrativa trans”. Como explica a fundadora, Stephanie Davies-Arai:
“Uma criança com menos de 9 anos acreditará que colocar um vestido em uma boneca transforma a boneca em uma menina. Para o garoto que adora usar roupas de princesa, ‘eu sou uma garota’ é a explicação que faz mais sentido nessa fase de desenvolvimento da infância. ‘Afirmação’ reforça esses estereótipos como verdadeiros”.
A mídia aderiu ao discurso do “nascido no corpo errado” e passou a defender a realização precoce da cirurgia de mudança de sexo
Apesar de seu “princípio abrangente” como uma instituição de caridade para não atacar ou denegrir outros indivíduos ou organizações, a Mermaids tem criticado Stephanie e a entidade que ela chefia. A Mermaids se referiu a ela, que foi pré-selecionada para o prêmio John Maddox Sense about Science de 2018, como uma “ativista antitrans não qualificada”.
Em 2018, fui convidada a contribuir com um capítulo para o livro Crianças e Jovens Transgênero: Nascido em Seu Próprio Corpo. Entrevistei cinco lésbicas orgulhosas, todas as quais sentiram que teriam se identificado como transgêneros se a opção lhes tivesse sido apresentada quando crianças. Sem exceção, elas sentiram que isso teria sido um erro terrível. Se sua “identidade trans” tivesse sido confirmada, cada uma delas hoje seria infértil e enfrentaria um futuro incerto de possíveis problemas de saúde causados ​​por hormônios sintéticos e cirurgia invasiva.
Apesar da escassez de evidências clínicas, a narrativa “nascido no corpo errado” se espalhou dos grupos de lobby para o público em geral e até à prática clínica. Quando o Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero foi aberto na Clínica Tavistock, em Londres, em 1989, recebeu dois encaminhamentos ao longo do ano, ante 2.590 no biênio 2018-19. O papel de grupos trans, incluindo o Mermaids, na defesa da transição como uma solução completa para jovens problemáticos, provocou uma série de demissões entre os profissionais de saúde. Um ex-clínico disse ao Times: “Esse tratamento experimental está sendo feito não apenas em crianças, mas também em crianças muito vulneráveis, que sofreram dificuldades de saúde mental, abuso, trauma familiar, mas às vezes esses outros fatores ficam encobertos”. Medo de ser acusado, relatos de “transfobia” e pressão para afirmar a “identidade de gênero” de pacientes jovens são relatados como tendo colocado os médicos em uma posição impossível.
Mas isso não se reflete na grande cobertura da mídia sobre o assunto. Dramas e documentários enjoativos sobre crianças que se identificam como transgêneros, de Just a Girl da BBC Radio 4 a Butterfly da ITV, tornaram-se um produto essencial da TV contemporânea, consolidando o conceito de “corpo errado” na imaginação do público. E, em muitos desses programas, a Mermaids atuou como consultora, ganhando um tempo no ar sem precedente para fazer reivindicações carregadas de emoção.
Aqueles que não seguem o dogma do “corpo errado” são automaticamente tratados pela Mermaids como hostis. Olly Lambert é um cineasta que, em 2018, fez o documentário Trans Kids: Chegou a Hora de Conversar, para o Canal 4 da BBC. Buscando produzir um programa equilibrado, Lambert abordou o que ele descreveu como “o grupo de defesa mais conhecido para crianças trans”, assumindo que a Mermaids seria a mais interessada em contribuir. Ele explica: “Como muitas outras pessoas antes de mim, descobri que a instituição não tolera questionamentos e vai jogar pesado para interromper qualquer debate. Nosso genuíno desejo de fazer perguntas sobre a melhor forma de apoiar crianças não compatíveis com o sexo foi intencionalmente mal interpretado como ‘negação da existência de crianças trans’, algo absurdo e evidentemente falso”.
Em defesa de seu discurso, a instituição tem recorrido à Justiça

Eventualmente, Susie Green recorre a ações legais contra os que não seguem sua cartilha. Em 2018, a ativista de direitos das mulheres Posie Parker foi interrogada pela polícia de West Yorkshire, que viajou mais de 400 quilômetros para questioná-la sobre ter se referido à “cirurgia de redesignação sexual” de Jackie como “castração” nas mídias sociais. Em 2019, a apresentadora e comentarista católica Caroline Farrow também foi interrogada, como medida cautelar, parte de uma investigação de crime de ódio. “Foi impressionante”, lembra Farrow, “que quatro comentários no Twitter, que nem sequer tinham a ver com ela, Susie Green, tenham exigido uma ação imediata. O pedido de me interrogar como medida cautelar me deixou extremamente abalada, irritada e com medo.”
Parece que outros membros da instituição de caridade também estão interessados ​​em seguir sua agenda pelos tribunais. Em 2019, a funcionária da Mermaids Helen Islan, mãe de uma criança que se identifica como transgênero, levou a ativista de direitos humanos Miranda Yardley ao tribunal, novamente por comentários feitos no Twitter. Yardley é uma transexual e franca crítica do movimento transgênero moderno. O caso, que foi a primeira acusação no Reino Unido por “crime de ódio transgênero”, entrou em colapso em um dia. O juiz afirmou que não havia provas de assédio e o Serviço de Promotoria da Coroa (CPS, na sigla em inglês) nunca deveria tê-lo aberto.
O advogado Gudrun Young, que estava acompanhando o processo, observou: “É preciso questionar por que a promotoria não apenas decidiu processar Miranda Yardley nessas circunstâncias, mas também por que foi tão rápida em classificar a questão inadequadamente como um ‘crime de ódio por transgêneros’”. Ele acrescenta que tanto os tribunais quanto a CPS devem ter muito cuidado com as tentativas de usar o sistema judicial para silenciar a oposição política e ideológica.
Note-se que não apenas a Mermaids deu treinamento e recebeu apoio de várias forças policiais, mas a entidade também participou do desenvolvimento da política da CPS. Como parte interessada, foi consultada sobre o desenvolvimento da Declaração de Igualdade Trans 2019 da CPS.
A nova ministra da Mulher do Reino Unido poderá frear o avanço da Mermaids

A influência da Mermaids no nível parlamentar também é notável. Em 2015, Susie Green foi selecionada para testemunhar pessoalmente sobre a investigação a respeito da igualdade de transgêneros, conduzida pelo Comitê de Mulheres e Igualdade. Em seu depoimento, alegou que as crianças cujos pais preferem aguardar mais tempo em vez de adotar quanto antes o tratamento hormonal pela mudança de gênero tornam-se “autoprejudiciais e suicidas”. Mais uma vez, ela se referiu ao risco de 48% de tentativa de suicídio.
A Mermaids cometeu vários erros nos últimos anos — de redobrar o apoio a uma mãe que um juiz da Suprema Corte considerou ter causado um “dano emocional significativo” ao filho a uma violação de dados que levou “detalhes íntimos de jovens vulneráveis”.
Parece que a nomeação de Liz Truss como ministra da Mulher no Reino Unido tem potencial para impedir o avanço da Mermaids. Estabelecendo suas prioridades em aceitar o papel, Truss enfatizou a proteção à infância, argumentando que é “muito importante que, enquanto as crianças e adolescentes estejam desenvolvendo a capacidade de tomada de decisão, nós possamos protegê-las de tomar decisões irreversíveis”. Finalmente, estão começando a ser feitas perguntas sobre o viés ideológico da Mermaids e a influência dela no governo.
Observando como a entidade funciona, uma versão diferente de um velho ditado jesuíta vem à mente: “Me dê um filho até os 7 anos e eu mostrarei a você um adulto trans ou não binário”. Enquanto a narrativa de “corpos errados”, suicídio e perseguição tem um apelo básico, é preocupante a velocidade com que esse pequeno grupo de verdadeiros crentes passou a exercer tal influência sobre a formulação de políticas públicas e a prática clínica. A história do sucesso da instituição de caridade é uma prova da credulidade de adultos que deveriam saber mais e da vulnerabilidade das crianças que eles deveriam proteger melhor.
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Jo Bartosch é jornalista e faz campanha pelos direitos de mulheres e meninas

Revista Oeste