quarta-feira, 8 de abril de 2020

Vírus chinês abala Marinha mais poderosa do mundo, por Vilma Gryzinski


Bateu, levou: secretário e ex-piloto de helicóptero Thomas Modly cai depois de choque nada gentil no caso do porta-aviões cheio de corona Joshua Roberts/File Photo/Reuters

Na hora errada, no lugar errado, com os homens errados.
Entre tantas coisas inacreditáveis que estão se sucedendo no mundo, a crise na Marinha americana abre uma brecha mais assustadora ainda: o que aconteceria se a cadeia de comando fosse rompida nas forças armadas mais poderosas do planeta?
Hierarquia, obviamente, é a base das organizações militares. Ainda mais na Marinha, onde um grupo de oficiais tem que ficar até meses mantendo a disciplina sobre centenas ou milhares de comandados.
O “motim” que levou o secretário da Marinha interino, Thomas Modly, a renunciar ou ser renunciado foi ao contrário dos casos clássicos da vida real ou da ficção.
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Os homens (e mulheres) do comandante de um dos prodígios da Marinha mais poderosa do mundo, o porta-aviões Theodore Roosevelt, ficaram revoltados não só com a demissão dele como com os termos desastrosos usados por Modly num discurso sobre o assunto.
Recapitulando: o capitão Brett Crozier foi tirado do comando do porta-aviões, uma das posições mais prestigiosas da carreira, por escrever uma carta a seus comandantes insistindo que o Roosevelt recebesse licença, até então negada, para desembarcar e colocar a tropa em quarentena na ilha de Guam, onde estava ancorado. 
Motivo: havia 114 casos diagnosticados com o vírus chinês entre os mais de 4 mil tripulantes.
“Não estamos em guerra. Marinheiros não precisam morrer”, apelou.
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Num porta-aviões, onde a tripulação reparte espaços exíguos, os dormitórios são prateleiras de beliches para 60 pessoas cada e a maioria nem sequer tem acesso aos deques abertos, é obviamente impossível pensar em distanciamento de segurança.
“Remover a maioria da tripulação embarcada num porta-aviões nuclear dos Estados Unidos e isolá-la por duas semanas pode parecer uma medida extraordinária”, escreveu Crozier.
O comandante certamente tinha plena consciência da importância estratégica dos 19 porta-aviões (onze preenchendo todos os requisitos, os demais fazendo-o na prática) que dão aos Estados Unidos uma capacidade de projeção de poder de superpotência única.
Ainda mais num momento de crise sem precedentes, em que a China está aproveitando a maldição que saiu de Wuhan para aumentar a guerra de propaganda, expandir sua influência global e desafiar mais ainda os Estados Unidos no teatro operacional mais importante, o Mar do Sul da China.
Problema: o memorando foi mandado por e-mail de uma forma considerada deliberadamente destinada a vazar para a imprensa e, assim, forçar uma reação.
Foi a interpretação dada por Modley, que assumiu como “minha e somente minha” a decisão de tirar Crozier do comando.
O capitão saiu debaixo de aplausos dos marinheiros alinhados no deque, com seu nome entoado como num jogo de futebol.
De jaqueta de couro e expressão nobre, ele saiu do porta-aviões e, antes de subir no veículo que o aguardava, virou-se para olhar os homens e mulheres que o aplaudiam. Uma cena de filme.
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Mais ainda porque depois foi diagnosticado com o novo vírus.
A decisão de Modley, que estava como interino no cargo, foi apoiada pelos altos escalões: hierarquia é hierarquia.
Mas a confusão aumentou depois que o ministro, ex-piloto de helicóptero da Marinha, usou a linguagem nada cuidadosa de seu meio para arengar a tropa do porta-aviões. 
Foi pessoalmente ao navio e tentou explicar que Crozier havia mandado o e-mail para mais de 20 pessoas, “acreditamos que possa ser mais”. Logo vazou para o jornal San Francisco Chronicle, que “publicou informação sigilosa sobre um navio de guerra da Marinha”.
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“Se ele não achava que essa informação iria vir a público, nessa era da informação em que vivemos, então era A) ingênuo demais ou burro demais para comandar um navio como esse. A alternativa é que fez isso de propósito E isso é uma violação grave do Código de Justiça Militar, com o qual todos vocês são familiarizados”.
A argumentação, e até o tom bruto, fazem sentido. Mas Modley foi vaiado nos termos mais crus possíveis. “F*** off”, alguém diz num dos vídeos.
Depois pediu desculpas pelos termos usados, depois Donald Trump disse que podia ver o assunto porque “estava ouvindo coisas boas sobre os dois cavalheiros”, depois foi conversar com o ministro da Defesa, Mark Esper. Depois apresentou a renúncia.
Em tempos normais, já seria uma tremenda crise. No pandemônio atual, abre uma perspectiva impensável: unidades militares sob risco de contágio coletivo que se rebelam.
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No mais clássico dos livros (depois filme com Marlon Brando) sobre revoltas a bordo, O Motim, a história do veleiro comercial Bounty mostra as tensões que um capitão caprichoso ou até louco provocou com a insensata viagem para a nada importante missão de recolher mudas de fruta-do-conde no Taiti.
Nas forças armadas profissionais, a tendência a abafar e até proteger as mancadas feitas por oficiais de alta patente, equilibrando o espírito de corpo com rigorosos processos de investigação.
Quando não dá para segurar, cabeças rolam. Metaforicamente.
Os militares americanos formam as forças armadas mais poderosas do planeta – e de todos os tempos. São também preparadas para enfrentar uma guerra nuclear, com consequências infinitamente mais devastadoras do que o vírus.
O caso do porta-aviões é episódico, mas com certeza está deixando muitos quepes em pé. Instabilidade política, hierárquica e psicossocial formam o caldeirão do inferno.
“Já vai tarde”, disse um tripulante do Theodore Roosevelt ao saber da renúncia do secretário Modly.
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