domingo, 9 de fevereiro de 2020

"Acadêmicos ficam constrangidos em admitir força do acaso no futebol", diz Tostão

Nos últimos dez anos houve, principalmente nas principais equipes do mundo, uma evolução no futebol, dentro e fora de campo.
O jogo ficou mais dinâmico, veloz e com mais pressão para recuperar a bola. Os times estão mais compactos, e as funções exercidas pelos atletas vão muito além do posicionamento tático. Não há mais razão para explicar a maneira de atuar apenas pelo sistema tático. Os jogadores não param de correr.
A ciência esportiva provocou um grande desenvolvimento na preparação de profissionais ligados ao futebol e também na formação dos atletas. Os europeus, por terem melhores condições financeiras, educacionais e sociais, deram um salto à frente, em todas as atividades profissionais, inclusive no futebol.
O passe, símbolo do jogo coletivo, e o drible, o maior representante do talento individual, passaram a conviver melhor, a ser complementares. Um potencializa o outro. O jogo ficou mais técnico, tático, sem perder a fantasia e a inventividade.
Os europeus perceberam também que, para ter mais lucro, necessitavam de estádios mais confortáveis e seguros, com ótimos gramados e um futebol mais prazeroso, ofensivo e eficiente. 
Hoje, o Liverpool, dirigido por Klopp, continua a evolução, uma mistura de guardiolismo com o pragmatismo de técnicos, como Mourinho e Ancelotti.
Essa evolução foi muito menor no Brasil. Ficamos estagnados, repetindo práticas viciadas das últimas décadas.
As estatísticas e a tecnologia deram grande contribuição à qualidade e à compreensão do jogo. Porém, não podemos ser fascinados e reféns dos números.
Em vez de priorizar as estatísticas para avaliar as partidas, deveríamos aprender a observar mais os detalhes individuais e coletivos, para, depois, com o auxílio das estatísticas, construir conceitos. As possíveis divergências nos dois olhares melhoram o conhecimento.
Klopp, do Liverpool, se inspira com a mistura de guardiolismo e o pragmatismo de Mourinho
e Ancelotti - Carl Recini - 1.fev.2020/Reuters
No passado, havia mais comentaristas e colunistas literários. Nelson Rodrigues, com seu delicioso exagero e descompromisso com os detalhes técnicos, escrevia magistrais colunas. Armando Nogueira unia a realidade e a poesia. Hoje, predomina um olhar pragmático, estatístico, uma tentativa de explicar tudo, mesmo o que não tem explicação.
Profissionais acadêmicos ficam constrangidos em admitir a força do acaso, como se isso fosse um atestado de falta de conhecimento científico.
Em 2010, na África do Sul, onde eu estava presente, a Espanha, inspirada no Barcelona dirigido por Guardiola, ganhou a Copa, além de ter sido, em 2008 e 2012, bicampeã europeia. Os espanhóis encantaram o mundo.
Naquele Mundial, percebi uma grande mudança na maneira de ver e de falar sobre futebol, o que não significa que a transformação tenha começado naquele momento. Parte da imprensa assistia aos jogos, nos estádios, com o computador à frente. Os jornalistas digitavam milhões de vezes e olhavam muito mais para a tela da máquina do que para o gramado. As informações e opiniões eram transmitidas em tempo real. Não havia espaço para reflexões.
Como tenho dois olhares sobre futebol, um mais literário e reflexivo, e outro mais pragmático, técnico, tático e científico, fico dividido entre o real e o imaginário, entre a ciência e a arte, entre o que é e o que poderia ser.
Tento aproximar os dois olhares, mas, muitas vezes, eles não se entendem. Um quer ser mais importante e melhor que o outro. Tenho que tomar uma atitude. 
Eu decido.

Folha de São Paulo