Crises são fruto, sobretudo, de contradições que têm um forte potencial desestabilizador. Olhando a partir da lente do direito, três me parecem ser as contradições que estão por trás do atual momento.
Em 1988, optamos pela criação de uma democracia generosa, voltada a enfrentar o enorme deficit social que estruturou a sociedade brasileira ao longo de sua história. No início foi difícil: crise fiscal e desmandos de Collor. Com a estabilização, o projeto zarpou. Nestas últimas décadas, muitos foram os avanços, não apenas em termos de bem-estar e de abertura democrática, mas também de emancipação de setores tradicionalmente discriminados. Esse ciclo virtuoso começou a se fechar em torno de 2011, com a retomada da desigualdade, da opacidade da política e da dificuldade cada vez maior de assegurar as expectativas de acesso aos serviços públicos, por parte de cidadãos mais cientes de seus direitos. Essa contradição entre as expectativas de expansão e uma experiência de frustração da cidadania em relação aos seus direitos levou milhões de jovens às ruas, marcando o primeiro ato da atual crise.
Em resposta a essas manifestações, diversas inovações positivas foram introduzidas em nosso ordenamento jurídico. Aprovou-se uma lei de acesso à informação, ampliando a transparência e a capacidade da sociedade de fiscalizar os atos do governo. Entrou em vigor uma lei de corrupção empresarial, voltada a enfrentar as investidas do poder privado sobre a democracia. Por fim, permitiu-se a delação premiada, que tem se mostrado uma ferramenta poderosa para desvendar o conluio entre as elites empresariais tradicionais e a classe política.
Esse processo culminou, agora, com a proibição, pelo Supremo, do financiamento de campanhas por empresas. Essas mudanças, associadas a um fortalecimento paulatino de instituições de aplicação da lei, entram em forte contradição com uma cultura política patrimonialista, incapaz de separar o público e o privado. Os que não perceberam que suas velhas práticas não mais resistiriam à nova transparência prestam contas aos tribunais hoje. Aí o segundo ato desta crise.
A terceira contradição se refere à associação entre presidencialismo de coalizão e a chamada nova matriz econômica. Juridicamente, essa nova matriz significou uma ampliação da discricionariedade do Estado para favorecer determinados setores da economia, por intermédio de desonerações fiscais, juros subsidiados pelo tesouro, financiamento de grandes obras etc. O uso desses mecanismos, dissociados de critérios rígidos de transparência, eficiência e impessoalidade (artigo 37 da Constituição), tiveram um impacto perverso sobre nosso já heterodoxo presidencialismo de coalizão. Com o agravamento da crise fiscal, esse modelo se desintegra. Abre-se espaço para um novo e arriscado presidencialismo: o de colisão.
O que está em questão neste momento é: quem pagará a conta dessas contradições? O ajuste recairá prevalentemente sobre os direitos dos cidadãos mais vulneráveis ou sobre os privilégios dos grupos e corporações entrincheirados no Estado? A crise política alienará ainda mais os cidadãos do processo democrático ou desestabilizará a nossa predatória plutocracia partidária?