7% ou 3%? Depois da queda abrupta do mercado acionário, o governo chinês garante que o PIB da segunda maior economia do mundo ainda crescerá 7%, em linha com a hipótese de "aterrissagem suave". Os céticos, cada vez mais numerosos, ignoram os desacreditados índices oficiais, apontando a anemia de indicadores físicos, como o consumo de eletricidade e o movimento ferroviário de carga, que sinalizariam expansão anual de apenas 3%, numa "aterrissagem forçada". A verdade estatística está, provavelmente, no meio termo. Já a verdade histórica parece nítida: encerrou-se o ciclo da "globalização chinesa". É tempo de aposentar uma lenda.
A lenda diz que o sucesso da China derivou de um modelo assentado na centralização de decisões, no dirigismo estatal, no gerenciamento econômico heterodoxo e no financiamento subsidiado da projeção externa das empresas do país. Difundida no Brasil pelos arautos do capitalismo de Estado e do neonacionalismo, ela é menos uma análise da inserção chinesa na economia mundial que uma plataforma de combate ideológico. Suas mensagens: a) o "modelo chinês" serviria como fonte de inspiração para o Brasil reformar-se a si mesmo; b) a cooperação estratégica da China com os "países emergentes" contrabalançaria a polaridade geopolítica exercida pelos EUA e pela União Europeia. Tudo isso tinha uma película de verossimilhança na hora do crash financeiro global de 2008-2010, mas não resiste à prova da "aterrissagem" chinesa.
O "modelo chinês" nunca foi um "modelo", mas unicamente a forma assumida pela economia da China na etapa inicial de sua transição do socialismo para o capitalismo. Nessa etapa, o dirigismo estatal propiciou o crescimento econômico acelerado porque o país dispunha de reservas abundantes de força de trabalho barata e os mercados externos eram capazes de absorver, na forma de importações, a poupança compulsória da população chinesa. Mas tais condições desapareceram. A China em "aterrissagem" só pode prosseguir seu desenvolvimento pela ativação do mercado interno -o que exige a desmontagem das engrenagens do capitalismo de Estado.
A passagem de uma economia de investimento para uma economia de mercado solicita reformas radicais, que se estendem do direito de propriedade aos direitos civis e políticos, passando por regras capazes de assegurar a concorrência. Os dirigentes chineses resistem às reformas mais profundas, que provocariam fissuras insanáveis no sistema político totalitário. Mesmo eles, porém, reconhecem oficialmente o imperativo de liberar as forças de mercado da teia asfixiante de controles estatais. O capitalismo de Estado não é o futuro, mas o passado, da China -eis uma conclusão inevitável que escapa aos ideólogos brasileiros do "modelo chinês".
A tese da "aliança estratégica" antiamericana nunca passou de uma bizarra utopia. O grupo dos Brics, celebrado pelo governo brasileiro como polo geopolítico alternativo, reúne países com interesses fundamentais distintos. Índia e China são potências nucleares rivais. China e EUA são parceiros estratégicos no universo das finanças globais. O Banco dos Brics, exibido no Brasil como instrumento de revolução da ordem financeira global, é um elemento periférico no esforço de internacionalização da economia chinesa.
A "aterrissagem" da China, suave ou forçada, evidencia a dimensão da fraude analítica. Os "países emergentes" cresceram à sombra da "globalização chinesa", empurrados pelo vento de cauda da explosão das cotações das commodities e por fluxos inéditos de investimentos estrangeiros. Hoje, todos eles sofrem, em graus diferentes, os impactos da reversão do ciclo econômico -e, enquanto a China desacelera, os capitais escorrem na direção dos EUA. "Modelo chinês"? O admirável mundo novo cantado pelo lulopetismo era só uma metamorfose do mundo velho.