Como é tradição, coube ao Brasil abrir os debates da Assembleia-Geral da ONU na última segunda-feira (28), em Nova York. Alguns dizem que a prática, inaugurada pelo então chanceler Oswaldo Aranha em 1947, remonta ao contexto da Guerra Fria.
De acordo com tal hipótese, haveria a necessidade de um país neutro funcionar como "algodão entre cristais" ante Estados Unidos e União Soviética. A escolha do Brasil como primeiro orador resultaria de uma ação bem orquestrada do secretariado da nascente instituição.
É bem verdade que, em fevereiro de 1946, George Kennan, ministro-conselheiro da Embaixada dos EUA em Moscou, já enviara ao Departamento de Estado seu famoso "Longo Telegrama", publicado mais tarde (julho de 1947) com o título "Fontes da Conduta Soviética" (e assinado sob o pseudônimo "X"), na reputada revista "Foreign Affairs".
Kennan argumentava que a política externa da URSS pouco se balizaria por uma suposta solidariedade internacional entre forças socialistas. A Moscou dos comissários do Politburo reproduziria algo da lógica geopolítica dos czares no estabelecimento de "esferas de influência" que, no limite, serviriam como plataformas para a expansão global do poderio soviético.
Spencer Platt/AFP | ||
A presidente Dilma Rousseff faz discurso de abertura da Assembleia-Geral da ONU, nesta segunda (28) |
À época do discurso de Oswaldo Aranha, Churchill também já contribuíra com seu "pilar" para a construção da Guerra Fria. Em março de 1946, o líder britânico, derrotado no ano anterior nas eleições para primeiro- ministro, proferira no Westminster College (Fulton, Missouri) o famoso discurso em que alude a uma "cortina de ferro" baixada pela projeção soviética sobre a Europa Oriental.
No entanto, é de toda probabilidade que o fato de o Brasil ter se estabelecido como primeiro orador da Assembleia-Geral não derive de uma estratégia cuidadosamente executada por burocratas da diplomacia multilateral.
Se, por um lado, a desconfiança entre Washington e Moscou coexistira com a aliança de conveniência que ambas forjaram com vistas a derrotar as potências do Eixo, é verdade também que, naqueles três primeiros anos da ONU (1945-47), a Guerra Fria ainda encontrava-se em sua primeira infância.
O mais plausível é que o costume deva-se menos a uma ação bem pensada do secretariado da nascente instituição e mais a um detalhe fortuito. Reza a lenda que um diplomata brasileiro, encarregado de inscrever o país na lista de oradores, equivocou-se no horário de abertura do escritório da ONU que coligia a relação de debatedores, ali chegando mais cedo.
O Brasil ter se apresentado como primeiro da lista caiu bem aos propósitos da ONU, que a cada ano repete o costume de convidar o Brasil para inaugurar o debate.
Além da ordem de oradores, há uma outra tradição que sempre acompanha os nossos discursos na ONU, e isso parece transcender os interesses específicos de diferentes governos brasileiros, sejam eles de extração ditatorial ou democrática: o apego à ideia de que o Brasil deve integrar o Conselho de Segurança da ONU na condição de membro permanente.
A cada setembro, quando o mandatário brasileiro se pronuncia sobre o assunto, a impressão que se tem é que a reforma do CS é iminente. Com Dilma nesta semana não foi diferente.
Após uma reunião com outros postulantes a um assento permanente no conselho (Alemanha, Japão e Índia, que, juntamente com o Brasil, formam um "G4" de candidatos), a presidente manifestou o entendimento de que o grupo intensificará esforços para a atualização daquele órgão colegiado.
Tais esforços, contudo, dificilmente frutificarão. Atualizar o quadro de membros permanentes e não permanentes, bem como os métodos de trabalho do conselho, exige anuência dos atuais P5 (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China).
Imaginar um tal consenso a partir desse grupamento –de interesses marcadamente díspares– é de pouco realismo.
Os EUA manifestam abertamente seu apoio à Índia –e assim esperam relações privilegiadas com Nova Déli–, mas o fazem sabendo que a China não concorda de fato com o ingresso de um outro país asiático no quadro de membros permanentes. Além do que a China, opõe-se fortemente à entrada do Japão no grupo.
Mesmo no âmbito europeu, o apoio ao pleito alemão não é consenso. Italianos e espanhóis, por exemplo, no fundo acham que se a Alemanha se juntar a Reino Unido e França num clube de elite, Roma e Madri seriam capitais de uma Europa de "segunda divisão".
Tampouco na África ou na América Latina existe consenso sobre quais países deveriam representar essas regiões numa sonhada atualização do conselho.
O desejo de fazer parte de um conselho reformado não é meta desvencilhada de ônus. Trata-se de investimento volumoso e de alto risco. Nossa diplomacia tem dedicado através das décadas imenso capital intelectual, alocação de tempo, pessoal e outros recursos materiais para fortalecer nossas credenciais a uma eventual reforma.
Exemplo recente de tal direcionamento de esforços é a abertura de 40 novas embaixadas na África subsaariana, no Oriente Médio e no Caribe desde 2003 –de que não resultaram grandes ganhos econômicos para o Brasil. Por ela dá-se bem a medida do preço de tal ambição.
É por isso que a questão da atual estrutura do órgão –pouco afeita a mudanças– e as muitas outras urgências do Brasil têm de nos convidar, mais do que nunca, a uma análise do tipo custo-benefício.
Já é hora de o Brasil deixar de gastar tantos ativos diplomáticos na busca de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Mais vale fortalecer nossas ações no campo das negociações comerciais e na promoção da atração de investimentos. Para gozar de mais poder e prestígio no cenário internacional, o Brasil precisa, antes de tudo, ser mais rico.