Escândalo do Master escancara a relação promíscua do banco com
ministros e põe o STF na defensiva
D esde a revelação da viagem de Dias Toffoli em um jatinho particular com Augusto de Arruda Botelho, da defesa de um dos diretores do Master preso em virtude de fraudes financeiras, o ambiente nos bastidores do Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a se deteriorar. A Corte vinha tentando conter os danos desse incêndio quando, uma semana depois, a temperatura voltou a subir (e mais alta) com a revelação de que o Master tinha um contrato de R$ 130 milhões, pagos em três anos, com a advogada Viviane Barci, mulher do ministro Alexandre de Moraes.
A contratação previa serviços de assessoria jurídica e institucional perante o Banco Central (BC), a Receita, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica e a órgãos ligados aos Três Poderes. A soma dos episódios, que se acrescentou ao escândalo da Vaza Toga, aprofundou o desgaste em torno de Moraes. Ao menos cinco ministros passaram a tratá-lo como “foco recorrente de crise”, responsável por manter o Tribunal sob exposição permanente.
Nesse contexto, chamou atenção o fato de não haver registros da atuação de Viviane junto aos órgãos citados no contrato. O BC comunicou que não existem anotações de acesso, reuniões ou interlocuções da advogada com a autarquia no período mencionado, informações confirmadas por órgãos federais.
A celeuma no entorno de Moraes aumentou consideravelmente nesta semana, quando o jornal O Globo noticiou que o juiz do STF passou a tratar diretamente do Master com o presidente da autoridade monetária, Gabriel Galípolo. Em um mesmo dia, o magistrado telefonou seis vezes ao chefe do BC num momento em que o Master já estava sob investigação e fiscalização intensa do BC. Os contatos ocorreram antes de qualquer manifestação pública de Moraes e chamaram atenção pela frequência e pelo contexto. Cabia ao BC conduzir a supervisão do Master e decidir, ao fim, sobre o seu destino no sistema financeiro.
Numa das conversas, segundo relato feito pelo próprio ministro a um
interlocutor, Moraes afirmou que tinha simpatia por Daniel Vorcaro,
dono do Master. Moraes teria argumentado que a instituição vinha
sendo alvo de resistência por parte do sistema financeiro tradicional,
por estar avançando sobre o espaço ocupado pelos grandes bancos.
Ainda de acordo com esse relato, o ministro pediu que o BC
autorizasse a compra do Master pelo Banco de Brasília (BRB), que
estava pendente do aval da autoridade monetária.
Galípolo, por sua vez, teria respondido que técnicos do BC haviam identificado fraudes no repasse de R$ 12 bilhões em créditos do Master para o BRB. Diante da informação, segundo os relatos, Moraes teria reconhecido que, caso as irregularidades fossem confirmadas, a operação não poderia mesmo ser aprovada.
Apesar do absurdo, Moraes permaneceu em silêncio. Somente no dia seguinte, depois da repercussão negativa em veículos de comunicação e junto à opinião pública, o ministro decidiu se manifestar. Em uma primeira nota, limitou-se a negar ter exercido pressão em favor do Master e afirmou que não tratou de interesses privados com Galípolo. O texto, porém, não mencionava o banco nem indicava datas, números de contatos ou reuniões.
Horas depois, Moraes divulgou uma segunda versão da nota, agora citando o Master e admitindo duas reuniões com Galípolo. Segundo o ministro, os encontros ocorreram em 14 de agosto e 30 de setembro, para tratar exclusivamente da aplicação da Lei Magnitsky e de seus efeitos sobre o sistema financeiro. A cronologia, no entanto, levantou questionamentos: a sanção foi aplicada pelo governo dos Estados Unidos em 30 de julho, o que torna incongruente a menção a uma reunião ocorrida dois meses depois para tratar de seus impactos iniciais.
Além disso, as reuniões admitidas por Moraes não constavam da agenda oficial de Galípolo, nem da diretoria do BC. A ausência de registro chamou atenção porque a autoridade monetária mantém histórico público detalhado de compromissos, inclusive encontros fechados e audiências externas. Procurada para explicar a falta de registro, a autarquia não apresentou justificativa.
O próprio BC confirmou, posteriormente, a realização de reuniões com Moraes para tratar da Magnitsky, mas não detalhou datas nem o conteúdo específico das conversas. As versões sucessivas, as correções posteriores e a ausência de registros oficiais passaram a integrar o debate público sobre a atuação do ministro, num momento em que o caso Master já havia extrapolado o noticiário jurídico e financeiro.
Relações incestuosas
Durante anos, o Master operou longe dos holofotes, construindo sua trajetória sob o signo da discrição. Nesse período, recorreu a escritórios de advocacia com trânsito consolidado em Brasília. Entre eles estava o Warde Advogados, que teve, em 2021, a advogada Roberta Rangel, mulher de Toffoli, como integrante de seu quadro societário — vínculo que hoje não existe mais. A informação, até então lateral, ganhou peso quando o processo que apura um esquema bilionário envolvendo o banco passou a tramitar no STF sob a relatoria do próprio Toffoli.
Pouco depois da viagem do ministro no jatinho particular com advogados de executivos do Master, ele decidiu puxar o caso para o STF. Em 3 de dezembro, já como relator de uma ação apresentada pela defesa do dono do banco, Daniel Vorcaro, Toffoli alegou a existência de pessoas com foro privilegiado, retirou a investigação da primeira instância, decretou sigilo integral e concentrou o processo em seu gabinete.
A canetada teve efeito cascata, pois anulou todos os atos praticados até então e condicionou qualquer avanço do caso à autorização da Corte. Na prática, a investigação foi interrompida fora do Tribunal e passou a tramitar sob controle direto de um de seus ministros. A decisão ocorreu no mesmo período em que a Polícia Federal (PF) apreendeu o celular de Vorcaro — o que deixou Brasília em pânico — e manteve o empresário e seus executivos presos por 11 dias.
Os laços do Master não se restringem aos casais Moraes e Toffoli. O banco também patrocinou eventos jurídicos frequentados por ministros do STF e de tribunais superiores, incluindo encontros com a presença de Ricardo Lewandowski, hoje integrante do governo Lula. À época desses eventos, Lewandowski ainda integrava a Corte. A relação avançou para outro patamar após a aposentadoria de Lewandowski. Já fora do Supremo, o ex-ministro firmou contrato de R$ 100 mil mensais com o banco para a prestação de serviços jurídicos por meio de seu escritório.
O vínculo, de natureza privada, foi encerrado quando Lewandowski assumiu o Ministério da Justiça e Segurança Pública e só veio a público depois que o Master passou a ser investigado pelas autoridades, na esteira do escândalo. O contrato ampliou o alcance das conexões do Master no Judiciário.
citado como exemplo de como a separação entre atuação jurisdicional e interesses privados se torna mais difusa quando bancos sob investigação mantêm relações com magistrados recém-aposentados.
Tribunal acuado
Diante de toda essa exposição, a postura do Supremo passou a assumir contornos defensivos. À medida que o caso Master deixou de ser tratado como um episódio isolado, a Corte se viu pressionada a conter seus efeitos políticos e institucionais. Coube ao decano, Gilmar Mendes, fazer a única manifestação pública em nome da Corte, assumindo a tarefa de normalizar condutas e amparar os colegas atingidos pelas revelações.
Ao comentar os episódios mais recentes, ele declarou ter “confiança” na atuação de Moraes e saiu em defesa de Toffoli, relativizando a gravidade dos fatos. Sobre a viagem de Toffoli em jatinho particular com integrantes da defesa de investigados do banco, observou que “encontros entre juízes e advogados são comuns” e que não via irregularidade na aproximação. O mesmo raciocínio foi aplicado ao caso Moraes. Gilmar tratou como suficientes as explicações apresentadas pelo colega, mesmo diante das revelações sobre contratos milionários, ligações reiteradas ao BC, reuniões fora da agenda oficial e versões sucessivas em notas públicas.
A diferença de tom entre as duas manifestações de Moraes também
chamou a atenção nos bastidores. A primeira nota, divulgada de forma
lacônica, limitou-se a negar irregularidades e afastar qualquer
interferência indevida. Já a segunda adotou um tom mais explicativo,
com a indicação de datas, encontros e justificativas.
Para interlocutores do Tribunal, a mudança foi interpretada como um sinal de que Moraes passou a reagir ao desgaste público provocado pela sequência de reportagens e pela pressão externa, sobretudo da imprensa. Para um ex-ministro do STF, a mudança foi eloquente: “Quando a toga começa a se explicar demais, é porque o Tribunal já sentiu o peso de tudo o que ocorreu”
A manifestação isolada contrastou com o silêncio dos demais integrantes da Corte, sobretudo do presidente do STF, Edson Fachin. A ausência de posicionamentos mais claros reforçou a percepção de um Tribunal acuado. Nesse ambiente, o decano, Gilmar Mendes, rompeu o silêncio ao defender publicamente Moraes e Toffoli. Dias antes, Mendes já havia se antecipado à possível vitória da direita no Senado, em 2026, e reduziu o alcance de pedidos de impeachment contra ministros do STF. Em um primeiro momento, tentou concentrar exclusivamente nas mãos do procurador-geral da República a iniciativa para responsabilizar magistrados da Corte.
Diante da reação política, recuou desse ponto específico. Ainda assim, manteve de pé o núcleo da decisão: fixou a exigência de quórum de dois terços do Senado para a abertura de qualquer processo de impeachment, restringiu as condutas passíveis de punição e tornou o afastamento de ministros uma hipótese excepcional — mesmo em cenários de forte desgaste público, como o atual.
Ao mesmo tempo, o acúmulo de crises abriu espaço para uma resposta institucional de outra natureza, embora velada. Nos bastidores, Fachin passou a defender a adoção de um Código de Conduta mais claro para os ministros, com regras explícitas sobre relações privadas, conflitos de interesse e limites éticos fora da atividade jurisdicional. A proposta, inspirada na Alemanha, ganhou força justamente por representar uma reação distinta à lógica do fechamento corporativo. A medida submete os integrantes da Corte a regras objetivas sobre transparência em encontros com partes interessadas, participação em eventos patrocinados, vínculos profissionais de familiares, recebimento de convites, viagens custeadas por terceiros e atuação após a aposentadoria.
Se aprovado, o Código não apaga os episódios recentes, mas sinaliza
um reconhecimento de que a confiança pública exige parâmetros
objetivos. Depois de contratos, viagens, pressões e decisões
concentradas, o Supremo se vê diante de uma encruzilhada: insistir na
autodefesa silenciosa ou aceitar que o Tribunal precisa se explicar — e
se regular. É nesse ponto que a iniciativa de Fachin deixa de ser
apenas uma resposta à crise e passa a se apresentar como a
possibilidade concreta de romper com o padrão que colocou o
Tribunal debaixo de fogo cerrado.
Cristyan Costa - Revista Oeste