Precisamos, urgentemente, de uma Suprema Corte Paralela, que se debruce sobre os grandes temas que hoje estão, oficialmente, entregues aos mandos e desmandos do STF
Campeia nas estâncias do Rio Grande do Sul um ditado: “Cachorro que come ovelha, só matando.”
D e tão marcante, o adágio cruzou pontes, rios, estradas e já chega até mesmo a quem nunca viu uma ovelha na vida, mas faz uma ideia do que a ancestral sabedoria campeira quer transmitir. O fazendeiro confia nos cães para pastorear o gado, não para devorá-lo. Ainda mais quando se trata de um bichinho com uma docilidade à toda prova — assim como as pessoas do povo que, em 8 e 9 de janeiro de 2023, atenderam candidamente ao pedido de militares para que entrassem num ônibus que, segundo diziam aquelas pessoas de farda, as levaria à estação rodoviária de Brasília para retornarem às suas cidades de origem.
Acredita-se que, em muitos casos, nem seja a fome que leve um cão a perseguir e cravar suas presas no pescoço da ovelha. Pode ser por um rompante, associado ao seu instinto de caça.
O que ninguém põe em dúvida é que, depois de sentir o gosto de sangue e de experimentar a adrenalina da conquista, a fera não serve mais para a lida de ajudar os peões no pastoreio do rebanho. Praticamente impossível confiar na regeneração do animal. Assim que começar a escurecer, o “ovelheiro” degenerado voltará a agir — sob silêncio e escoltado pelas sombras da noite. Contar com a “autocontenção” da fera equivale a dar de ombros para a provável dizimação do rebanho.
“Cachorro que come ovelha, só matando”, diz o ditado
Mas nem sempre é assim. O dono pode isolar o cachorro, especialmente à noite. Pode, também, doá-lo para quem precisa de um bom cão de guarda e não cria ovelhas em sua propriedade. O abate é recurso extremo. Especialmente para um cão que prestou tantos e tão bons serviços até sair do controle.
Enfim, soluções existem, desde que a ideia não seja a de cruzar os braços, claro. Se você chegou até aqui, deve estar perguntando que diabos o autor quer com esta conversa sobre coisas do campo se, no título, anuncia uma sugestão para que o Brasil volte a ter uma Corte Constitucional que cumpra seu papel… constitucional.
Bem, reconheço que o paralelo é um tanto excêntrico — talvez não tanto para o ministro Gilmar Mendes, o decano da Suprema Corte brasileira e homem familiarizado com a atividade rural. Sua família possui terras que, segundo publicou a revista Crusoé, perfazem mais de 7 mil hectares. Cria gado bovino. Ovelhas, não.
Nas suas fazendas, não. Seu colega, Edson Fachin, presidente do Supremo Tribunal Federal, é outro que pode entender a analogia campestre que ora proponho. Não, Fachin não é pecuarista como Mendes. Mas está tentando pastorear os colegas de Suprema Corte, de modo a conduzi-los para o cercadinho de uma atuação técnica, e sobretudo decente, como é da boa tradição do STF. Propôs a elaboração de um Código de Ética, e a reação de algumas excelências à sugestão pareceu indicar um rosnar com dentes à mostra. Mal comparando, é como se comportam cães que atacam ovelhas.
Fachin está apostando na estratégia do isolamento dos ministros de conduta reprovável. Mas, como sabem os estancieiros do Rio Grande e de todo Brasil, precisará pelo menos construir o cercado, digo, o Código de Ética. Como presidente, não tem este poder. É um ministro igual a dez outros.
E, malgrado detenha a cadeira presidencial, não tem a influência de um Gilmar, de um Alexandre de Moraes e de um Dias Toffoli, as figuras que mais recebem críticas, tardias mas contundentes, da grande imprensa que até bem pouco tempo atrás comportava-se como o peão que fecha um olho, quem sabe os dois, para não alarmar o patrão. OK, você quer saber logo de uma vez qual é a ideia mencionada no título para devolver ao Brasil uma Corte Constitucional digna deste nome.
Já estamos chegando. Antes, uma contextualização necessária. Depois de Lula perder a eleição presidencial para Fernando Collor de Mello em 1989, o PT lançou a ideia de criar um governo paralelo. Cada ministro de Collor teria, nas hostes do petismo, um ministro que lhe faria sombra. Um especialista da mesma área do ministro, mas imbuído da fúria oposicionista que notabilizou o velho PT. Foi uma versão do shadow cabinet (“gabinete paralelo”) criado em governos parlamentaristas da Europa.
A iniciativa nestes trópicos não vingou por muito tempo. E foi sepultada depois que o PT virou vidraça, assumindo governos estaduais, vencendo em capitais e cidades importantes e se tornando hegemônico na presidência da República desde 2003. O PSDB, oposição light aos governos de Lula e Dilma, não se interessou em fazer esta espécie de marcação cerrada ao petismo.
Lembrei do conceito de shadow cabinet agora, e não por causa do governo Lula — que bem mereceria, se tivéssemos uma oposição coesa.
A lembrança é por causa do STF.
Precisamos, urgentemente, de uma Suprema Corte Paralela, que se debruce sobre os grandes temas que hoje estão, oficialmente, entregues aos mandos e desmandos do STF.
É claro que não basta montar um tribunal paralelo dominado por visões conservadoras com a missão de examinar as decisões de um tribunal oficial aparelhado por 30 anos de governos de tendência socialista. Teríamos um Fla-Flu de teses jurídicas, quando muito. Dois vieses se contrapondo.
Foram quatro abordagens de Moraes a Galípolo — três por telefone, uma em pessoa.
Penso em um sistema baseado em inteligência artificial que se debruçasse sobre os principais temas do país com base na letra fria da lei, na melhor doutrina e na jurisprudência aplicável, com referências nacionais e internacionais. O mesmo sistema seria alimentado com todos os mandamentos éticos da magistratura brasileira e as obrigações formais impostas pela Lei Orgânica da Magistratura.
Não tenho ilusões sobre a dificuldade para implementar uma corte paralela de perfil técnico e, sobretudo, desfulanizado. Quem, dentre os amigos, parceiros ou advogados próximos de Gilmar, Moraes e Toffoli, por exemplo, aceitaria abrir mão de um acesso privilegiado às suas supremas decisões, e voltar ao plano dos mortais para, como todo brasileiro, curvar-se a um sistema judicial em que você não é nem menos nem mais do que ninguém?
Uma proposta complexa? Sim. Inexequível? Talvez. Mas é inegável que algo precisaremos fazer para, voltando ao termo empregado acima, desfulanizar a Justiça brasileira.
Hoje, todas as instâncias do Judiciário olham, impotentes, para uma lista exasperadora de abusos e afrontas à lei e à ética, de ministros que têm amigos, têm inimigos, têm patrocinadores, têm protegidos. Quem figura na capa do processo, como réu ou como autor, já sabe como tende a ser a decisão ou a sentença — principalmente quando o caso chegar à Suprema Corte. E se sabe qual será o desfecho do processo, não é pela qualidade da peça jurídica que construiu, mas pela influência de seu advogado.
O escandaloso caso do Banco Master, que contratou o escritório da esposa de Moraes, Viviane Barci de Moraes, por indecentes R$ 129 milhões, é a pá de cal na reputação do STF pela cifra em si, pelo objeto vago do contrato e pelo silêncio do casal sobre o assunto há mais de duas semanas.
A jornalista Malu Gaspar, a mesma que havia revelado a fortuna oferecida ao escritório da família Moraes, trouxe a informação, confirmada a ela por seis diferentes entrevistados, de que o próprio Moraes contatou o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, expressando preocupação com a situação do Banco Master.
Não foi uma vez só, informou Malu. Foram quatro abordagens de Moraes a Galípolo — três por telefone, uma em pessoa.
Isto tem nome. É lobby.
Na fazenda, se sabe. Cachorro que come ovelha não pode seguir no pastoreio.
Eugênio Esser - Revista Oeste