sexta-feira, 1 de novembro de 2024

J.R. Guzzo: 'O problema é o povo'

 

Guilherme Boulos, candidato a prefeito derrotado em São Paulo, após o resultado do segundo turno das eleições municipais (27/10/2024) Foto: Maira Erlich/Reuters

O trabalhador não interessa mais ao PT. Pior: tornou-se o inimigo


Nada revela tão bem a verdadeira alma da esquerda brasileira de hoje quanto a sua irritação cada vez mais óbvia com a classe trabalhadora que existe na vida real. Na sua conversa, para o seu sistema de propaganda na mídia e para si mesmos, continuam a dizer que são os advogados do povo no combate contra “os ricos” — e que a pobreza só existe porque existe riqueza. Na esfera dos fatos, falam cada vez mais raramente as palavras “trabalhador” e “trabalho”. Seu mundo se resume a oferecer à população “a democracia”, a defender Alexandre de Moraes e o STF, e a fazer policiamento contra o “fascismo”. 

A repressão ao “racismo” é o item seguinte. Junto vêm a “diversidade”, a “inclusão” e o direito de “transgêneros” usarem o banheiro das mulheres. O trabalhador não interessa mais. Pior: tornou-se o inimigo. Uma comprovação aritmética dessa realidade está na sova humilhante que o presidente Lula, o PT e os seus aliados do Psol acabam de levar nas eleições municipais. Das 5,5 mil prefeituras do Brasil, o PT ficou com 250 — menos de 5%. O Psol conseguiu ficar com nenhuma. Das 27 capitais do país, só ganhou em uma. O líder-Deus do “campo progressista” se escondeu durante toda a campanha eleitoral, para não passar recibo de vergonha explícita. 

Na sua última aparição em São Paulo, uma das raras que fez, dava a impressão de ser um boneco de museu de cera carregado num carro de som no meio de umas senhoras idosas. Não podia ser de outro jeito. Eleição é maioria, e maioria é exatamente o que o PT e seus auxiliares não têm mais. É o povo, e o PT não tem povo

Todas as análises que a esquerda fez sobre o seu desastre eleitoral, e sobretudo as bulas expedidas pelos sociólogos, politólogos e biólogos sociais que compõem esse habitat, chegaram às conclusões erradas — pois nenhuma delas sequer tentou olhar para o problema real. Estão falando até agora que o PT precisa “acertar o discurso”, entender “melhor” o país, “articular alianças” e outras fumaças — e não conseguem mais esconder a sua aversão ao povo brasileiro como ele é de fato, e não como deveria ser na esfera das ideias. Esse povo é tudo o que a esquerda mais detesta hoje em dia. É evangélico. Quer ganhar mais dinheiro, ter mais conforto e subir na vida. Não quer “tirar dos ricos” — quer ser rico ele mesmo. É o defensor número 1 da propriedade privada. 

É a favor da polícia e contra o bandido. Dá um valor essencial à família. O brasileiro que não mora nos bolsões urbanos dos ricos, faz fila de ônibus e não vai à parada gay, nem quer “educação sexual” nas escolas, é tratado pelo PT como o demônio. Basta dar uma leitura rápida no que estão escrevendo ou dizendo nos programas de televisão — aparece por trás, e mesmo pela frente, sua cólera cada vez mais aberta a uma massa de gente que se “deixa levar” pelo “discurso da direita”, é atraída naturalmente pelo “fascismo” e não tem condições culturais para entender que deveria ser “progressista”. São os motoboys que não querem carteira assinada. 

São os trabalhadores que sofrem na fila do sindicato para não pagar imposto sindical; são tratados, ali, como delinquentes “fascistas”. São os que acham melhor trocar de moto do que defender programais sociais.

As análises, diagnósticos e terapias da esquerda não conseguiram entender até agora que existe alguma coisa profundamente errada no Brasil quando as cores verde e amarela são tratadas como “cores fascistas”. A bandeira e o hino nacional, no credo do PT, passaram a ser símbolos “golpistas”. (Não tente, por exemplo, passar na frente de um quartel do Exército com uma bandeira do Brasil no carro; sabe-se lá o que o general Tomás vai achar disso.) É contra a razão comum, também, tentar convencer o cidadão que acorda às 4 horas da manhã para trabalhar, sai de casa com medo do que pode acontecer com as suas filhas e fica ralando o dia inteiro de que o criminoso é uma vítima — e de que as penitenciárias teriam de ser esvaziadas. 

Como é possível a esquerda, o PT e os intelectuais acreditarem, ou fingirem que acreditam, que o povo brasileiro, as massas de carne e osso que fazem trabalho físico para pagar por seu sustento, leve a sério a “crise do clima”? Crise, para eles, é o preço das coisas no mercado, o ladrão que pode lhes dar um tiro na cabeça para roubar o celular e a fila para fazer um exame médico no SUS. É a “picanha” que nunca veio. É a ideia de que o bandido “só quer tomar uma cervejinha”. É ver que Lula e todos os seus gatos gordos só se tratam no Sírio-Libanês, Einstein etc., na suíte luxo-plus-ouro. A mesma cegueira para a realidade está na obsessão perpétua da esquerda em exigir que o cidadão comum acredite em algo que não pode acreditar: que o pior problema da sua vida é o ex-presidente Bolsonaro.

Não falam outra coisa: Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro. Possivelmente está aí a matriz de todos os vícios da esquerda e das  classes culturais: estão convencidos de que o brasileiro médio não tem a capacidade de pensar racionalmente. Acham, no fundo, que é um ignorante, incapaz de ver que Bolsonaro é um perigo mortal para ele, e está sempre pronto a ser enganado por promessas idiotas feitas pelo pastor — ou por, digamos, algum coach tipo Pablo Marçal. É culpado, obviamente, do crime de acreditar em fake news e de usar a internet. 

Não entende as comentaristas políticas da Globo, cada vez mais impacientes com a sua dificuldade em dar crédito ao que elas falam. Não dizem, mas têm certeza de que o trabalhador que não vota no PTPsol-Lula é, no fim das contas, um boçal que não sabe ser cidadão. No limite, não deveria ter o direito de votar. O problema para a esquerda nacional é que o brasileiro da vida real é, sim, um ser racional — e que os verdadeiros ignorantes são eles, e não o povo. 

O indivíduo-padrão não foi à universidade, não toma vinho e não tem interesse pela pegada de carbono. Mas isso não quer dizer que ele não pensa. É óbvio que pensa. Não acredita, justamente porque pensa, que “o Bolsonaro” vai invadir a casa dele, roubar o seu carro e estuprar a sua mulher — nem vai perturbar o seu trabalho no aplicativo, perseguir a polícia e fazer greve no metrô. Como poderia, se são eles mesmos, o tempo todo, os que defendem a invasão de fazendas, o roubo de celular e tudo o que inferniza a vida do cidadão? Faça as contas, sem paixão: o povo odeia tudo o que a esquerda quer. 

Há uma nova luta de classes no Brasil — e Lula, o PT e o resto do “campo progressista” estão em guerra com a classe trabalhadora. Mudaram, definitivamente, de base. Representam hoje as classes que não trabalham, ou que não se conectam mais com o mundo da produção. Seu público se limita, justamente, a quem não produz e, pior ainda, a quem rouba o produto do seu trabalho. São as universidades, as redações e os sindicatos. São os sociólogos, os banqueiros e os artistas. São os procuradores, os juízes e os funcionários públicos que ganham mais de R$ 20 mil por mês, ou até menos. É o cardume que está nos conselhos das empresas estatais, ou estatizadas. São os escritórios de advocacia que defendem bilionários corruptos. É a JBS. É a Odebrecht. É quem quer ser como elas são. 

Lula, o PT e a esquerda trocaram o povo brasileiro pelos terroristas do Hamas, por governos assassinos como o do Irã e por ditadores como Nicolás Maduro. Depois ficam incomodados porque só elegeram prefeitos em 5% dos municípios. E como poderiam eleger mais falando do Hamas? O cidadão está pouco se lixando para o Hamas. Também não tem tempo para perder com outros fetiches do PT, a começar pela ameaça “da direita” — não se interessa pelo assunto, e tem certeza de que quem os ameaça não é a direita, nem a moça que pintou uma estátua com batom, e sim o assaltante à mão armada. 

O brasileiro não tem medo nenhum de Israel, nem de Donald Trump e muito menos dos Estados Unidos — ao contrário, muita gente quer mais é morar lá. A única ideia que tem sobre capitalismo é que gostaria muito de ser capitalista. Pior ainda do que trocar a classe dos que trabalham pela classe dos que não trabalham é a hostilidade cada vez mais aberta da esquerda ao povo como ele é. Ficam agressivos, por exemplo, com o eleitor que votou em Marçal, ou nos candidatos de direita, ou nos nomes apoiados por Bolsonaro — acham que não têm o direito de votar como querem, pois votam “errado”, ou são estúpidos demais para escolher “certo”, ou “não entendem” o que estão fazendo. 

O resultado é que a esquerda, na prática, tornou-se hoje a força política mais excludente do Brasil. Falam em “inclusão”, dia e noite, mas excluem a maioria da população. Em São Paulo, a capital do trabalho no Brasil, o Partido dos Trabalhadores excluiu mais de três quartos dos 9,5 milhões de eleitores. Nem sequer teve candidato — e o candidato que apoiou ficou em terceiro lugar numa disputa entre dois competidores, conseguindo perder do vencedor e das abstenções. 

A esquerda não entende que o povo brasileiro não gosta do que ela gosta. Não quer a esmola do Bolsa Família — porque quer, simplesmente, muito mais do que isso. Qual é o mistério? Não quer saber de projeto social. Quer ter mais e viver com mais comodidade. Não quer distribuir renda. Quer ter renda. Não quer saber de transgêneros, quilombolas e “povos originários”, porque nada isso tem a ver com a vida cotidiana da maioria. Não quer submarino atômico, “reforma agrária” do MST ou conversa de Brics. Não quer fumar maconha, nem torrar dinheiro nas refinarias da Petrobras e nem perdoar as dívidas dos irmãos Batista — mesmo porque ninguém perdoa as suas. Não quer “políticas públicas” que não entende. Não quer pagar um avião novo para Janja, e nem para quem vai ficar no lugar dela. 

A esquerda brasileira desistiu de fazer política. Em vez disso, decidiu entregar ao ministro Alexandre de Moraes em particular, e ao STF em geral, a solução de todos os seus problemas e o atendimento de todos os seus desejos. Não se interessa mais pela população deste país. Só se interessa em “fazer maioria” no Supremo — sobretudo quando se trata de absolver todo e qualquer caso de corrupção que envolva o “campo progressista”, os amigos e os amigos dos amigos. Sabe muito bem que Lula só é presidente da República porque foi tirado da cadeia e colocado lá pelo consórcio STF-TSE. É hoje a única carta do seu baralho — a que lhe permite governar sem povo. Condenou-se a viver assim. Não há outra saída à vista. 

Revista Oeste