sexta-feira, 29 de novembro de 2024

'A tutela suprema', por Rodrigo Constantino

 Além do atropelo ao Poder Legislativo, o STF pretende implementar no país a censura oficial


Luís Roberto Barroso, presidente do STF - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil


Em todo o mundo democrático está se travando a discussão voltada à proteção da liberdade de expressão, sem permitir, todavia, que o “mundo desabe num abismo de incivilidade que comprometa os valores democráticos e a dignidade humana”, afirmou o presidente do STF, Luís Roberto Barroso. O contexto é o julgamento de ações referentes ao Marco Civil da Internet. Na prática, o STF quer terceirizar a censura às redes sociais, tudo em nome da “recivilização” do país. 

Além do atropelo ao Poder Legislativo, o STF pretende implementar no país a censura oficial. Nenhum censor, porém, admite que quer calar opiniões com as quais discorda. Ele sempre fala em nome do bem geral, alegando que nenhum direito é absoluto como um pretexto para impedir a manifestação de ideias que julga inadequadas. No fundo, são os verdadeiros reacionários contra liberais e progressistas de fato, que se negam a assumir o papel arrogante de ministro da verdade. 


Além do atropelo ao Poder Legislativo, o STF pretende implementar no país a censura oficial - Foto: Reprodução/Flickr 

O principal risco é que as plataformas se tornem reféns do Estado brasileiro na obrigação de censurar conteúdos, sujeitas a multas e sanções se não removerem o que a esquerda e o Judiciário costumam classificar como “discurso de ódio” e “desinformação”, por exemplo. São expressões vagas que têm servido de instrumento para a perseguição de determinada visão de mundo. É um porrete ideológico disfarçado de defesa dos “valores civilizados”.

Em Areopagítica, seu discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento, John Milton apresentaria argumentos liberais contra a censura prévia. Publicada em 1644, a obra-prima do poeta seria escrita no contexto de batalha parlamentar, já que o líder da Assembleia, Herbert Palmer, havia exigido que um livro de Milton em defesa do direito de divórcio fosse queimado. Para Milton, a censura sempre esteve associada à tirania, e mais recentemente seria fruto do reacionarismo católico do Concílio de Trento e da Inquisição. Ele foi direto ao afirmar que o “projeto de censura surgiu sub-repticiamente da Inquisição”. 

Milton defendia que cada um pudesse julgar por conta própria o que é bom ou ruim. “Todo homem maduro pode e deve exercer seu próprio critério”, ele escreveu. Ele diz ainda: “O conhecimento não pode corromper, nem, por conseguinte, os livros, se a vontade e a consciência não se corromperem”. Para ele, todas as opiniões são de grande serviço e ajudam na obtenção da verdade. Os homens não devem, portanto, ser tratados como idiotas que necessitam da tutela de alguém. 



Primeira página de Areopagítica, de John Milton | Foto: Wikimedia Commons


Desconfiar das pessoas comuns, censurando sua leitura, “corresponde a passar-lhes um atestado de ignomínia”, considerando que elas seriam tão debilitadas que “não seriam capazes de engolir o que quer que fosse a não ser pelo tubo de um censor”. Para Milton, ao contrário, cada um tem a razão, e isso significa a liberdade de escolher. O desejo de aprender necessita da discussão, da troca de opiniões. A censura, então, “obstrui e retarda a importação da nossa mais rica mercadoria, a verdade”. Quanta diferença para a postura típica dos autoritários, como fica evidente na seguinte declaração de Trotsky: “Os jornais são armas. Eis por que é necessário proibir a circulação de jornais burgueses. É uma medida de legítima defesa!”. 

Seu colega revolucionário, Lenin, foi na mesma linha: “Por que deveríamos aceitar a liberdade de expressão e de imprensa? Por que deveria um governo, que está fazendo o que acredita estar certo, permitir que o critiquem? Ele não aceitaria a oposição de armas letais. Mas ideias são muito mais fatais que armas”.



Leon Trotsky, revolucionário russo comunista | Foto: Wikimedia Commmons  


Fica evidente o abismo existente entre esta visão de mundo, que pariu a União Soviética, e aquela de Milton, que influenciou a criação dos Estados Unidos, como se pode verificar pela afirmação de Thomas Jefferson: “Uma vez que a base de nosso governo é a opinião do povo, nosso primeiro objetivo deveria ser mantê-la intacta. E, se coubesse a mim decidir se precisamos de um governo sem imprensa ou de uma 29/11/2024, 11:59 A tutela suprema - Revista Oeste https://revistaoeste.com/revista/edicao-245/a-tutela-suprema/ 5/10 imprensa sem governo, eu não hesitaria um momento em escolher a segunda situação”. 

Além disso, o argumento de Milton mostra como a censura, na prática, seria ineficaz ou mesmo prejudicial ao seu intento original. Os censores, afinal, são humanos que erram também. Ele questiona como confiar nos censores, já que não são detentores da graça da infalibilidade e da incorruptibilidade. A censura não consegue levar ao resultado para o qual foi concebida. 

Ele diz: “Aqueles que imaginam suprimir o pecado suprimindo a matéria do pecado são observadores medíocres da natureza humana”. A reforma dos costumes imposta não surte o efeito desejado, como Milton demonstra por meio dos exemplos da Itália e da Espanha, “depois que o rigor da Inquisição se abateu sobre os livros”. É impossível tornar as pessoas virtuosas pela coerção externa, e a censura impede que se exerça a faculdade do juízo e da escolha. Uma das frases mais famosas de John Milton saiu justamente de Areopagítica: 

“Dai-me liberdade para saber, para falar e para discutir livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades”. Quem foi numa linha parecida com esta foi o filósofo John Stuart Mill, um dos primeiros a defender os direitos femininos. Mill escreveu:


“O único propósito de exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar dano aos demais. Seu próprio bem, físico ou moral, não é garantia suficiente. Não pode ser legitimamente compelido a fazer ou a deixar de fazer por ser melhor para ele, porque o fará feliz, porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria sábio ou mesmo acertado. Essas são boas razões para o advertir, contestar, persuadir, instar, mas não para o compelir ou castigar quando procede de outra forma.”


Ele acrescentou:

“Cada um é o guardião adequado de sua própria saúde, seja ela física, mental ou espiritual. A humanidade ganha mais tolerando que cada um viva conforme o que lhe parece bom do que  compelindo cada um a viver conforme pareça bom ao restante”. E, para cada um viver da melhor forma possível, a liberdade de expressão era fundamental segundo Mill: “Se todos os homens menos um partilhassem a mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade em silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, em silenciar a humanidade. Se a opinião é correta, privam-nos da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errada, perdem, o que importa em benefício quase tão grande, a percepção mais clara da verdade, produzida por sua colisão com o erro. Todo silêncio que se impõe à discussão equivale à presunção de infalibilidade. Há uma enorme diferença entre presumir uma opinião como verdadeira porque, apesar de todas as oportunidades para contestá-la, ela não foi refutada, e pressupor sua verdade com o propósito de não permitir sua refutação.”

Apenas com a liberdade de expressão podemos avançar como sociedade. É esta a liberdade que gente como o ministro Barroso quer suprimir, pois se julga detentor de uma razão superior que lhe permitiria “empurrar a história” e ser o responsável pela tal “recivilização” do país, quiçá do mundo! Falta ao nosso Rousseau de Vassouras mais humildade para admitir que ele também erra, como quando achou que o assassino Cesare Battisti era inocente, ou o abusador João de Deus, alguém com poder transcendente. O cidadão brasileiro não precisa dessa tutela suprema.



Ministro Luís Roberto Barroso, em sessão plenária do STF | Foto: Gustavo Moreno/STF 


Revista Oeste