quinta-feira, 27 de julho de 2023

'Paternalismo inconstitucional', editorial do Estadão

A pretexto de proteger direitos, o ministro Alexandre de Moraes atropela competências constitucionais e define de cima para baixo políticas públicas sobre pessoas em situação de rua


O sorriso da hiena - Foto Porta do Holanda.com.br



No Estado Democrático 

de Direito, não existe poder

 ilimitado. Todos os Poderes

 estão sujeitos a regras de 

competência. No entanto, 

é cada vez mais difícil que 

se respeitem esses limites. 

Parece sempre haver um 

bom motivo para justificar 

a exceção.


Recentemente, o ministro 

Alexandre de Moraes, do

 Supremo Tribunal Federal

 (STF), determinou que 

União, Estados e 

municípios adotem uma

 série de medidas em 

relação à população em 

situação de rua. 

O diagnóstico que levou

 à decisão é razoável: 

depois da pandemia, por 

vários fatores, cresceu 

muito o número de 

pessoas em situação de

 rua nas cidades 

brasileiras, e o poder público, 

em suas diferentes esferas, 

tem sido incapaz – e mesmo 

omisso – no cuidado dessas

 pessoas e no respeito a 

seus direitos.


Também não há como 

discordar de Alexandre de

 Moraes quando diz que 

“a atenção à população 

em situação de rua deve 

ser realizada a partir da 

observância de três eixos: 

evitar a entrada nas ruas; 

garantir direitos enquanto 

o indivíduo está em 

situação de rua; e 

promover condições para 

a saída das ruas”. O 

problema surge quando o

 ministro entende que ele

 sozinho tem poderes 

para fixar obrigações 

concretas sobre o tema 

para a União, os Estados 

e os municípios.


Por exemplo, Alexandre 

de Moraes determinou 

que todos os Estados e 

municípios cumpram 

imediatamente as 

diretrizes do Decreto 

Federal 7.053/2009, que

 instituiu a Política 

Nacional para a 

População em Situação 

de Rua. Com isso, a 

liminar do magistrado 

transformou uma política 

de livre adesão dos entes

 federativos em uma 

obrigação, distorcendo a 

concepção do próprio 

decreto da União.


Para justificar a medida, 

o ministro do STF alegou 

que, até 2020, apenas 5 

Estados e 15 municípios 

haviam aderido a essa 

política do governo federal. 


Ora, a baixa adesão dos 

entes federativos, com 

resistência mesmo 

daqueles cujos 

governadores eram então

 alinhados politicamente

 ao governo federal, diz 

muito sobre o decreto. E 

não é, de forma nenhuma,

fundamento para tornar a 

tal política obrigatória. 

O princípio federativo não 

é um adereço que se pode

 ignorar quando convém.


Entre outras ordens, o 

ministro Alexandre de 

Moraes fixou prazo de 

120 dias para que a 

União elabore um plano 

de ação e monitoramento 

para a implementação da 

Política Nacional para a 

População em Situação 

de Rua. À primeira vista, 

parece uma medida boa 

e razoável, com o 

Judiciário obrigando o 

Executivo federal a agir. 


No entanto, ela distorce 

o funcionamento do 

regime democrático. 

Em vez de uma lei 

aprovada pelos 

representantes eleitos, 

é a decisão de um único 

juiz que fixa os parâmetros 

de atuação do Executivo.


A bem da verdade, esse 

tipo de medida judicial é 

ingênuo e disfuncional. 


A canetada de um ministro

 do STF não resolve nem

 reduz o drama da 

população em situação de

 rua, que tem inúmeras 

particularidades. Não é 

por capricho que a 

Constituição encarregou 

a administração 

municipal de cuidar das 

questões locais. Quando 

o Judiciário avança sobre 

a esfera alheia, o 

resultado é a 

irresponsabilidade política 

do poder público e da 

própria população, que se

 vê autorizada a ficar i

ndiferente ao problema. 

Já existe um juiz em 

Brasília determinando o

 que se deve fazer.


Na decisão, o ministro 

Alexandre de Moraes 

menciona “a violação 

maciça de direitos 

humanos, a indicar um 

potencial estado de 

coisas inconstitucional”. 


É preciso cuidado com 

o tema. De outra forma, 

a Constituição de 1988 

deixará de ser cidadã 

para se tornar paternalista.


 A rigor, todos os dramas 

sociais são inconstitucionais,

uma vez que contradizem 

valores e direitos previstos

 na Constituição. Mas isso 

não autoriza que o 

Judiciário substitua, menos

 ainda por decisão liminar, 

o Executivo e o Legislativo.


O descuido com os limites 

constitucionais pode ser 

visto num ponto 

aparentemente pequeno, 

mas significativo, da 

decisão. Juntamente com

 o PSOL e a Rede, o 

Movimento dos 

Trabalhadores Sem Teto

 (MTST) é um dos autores 

da Ação de 

Descumprimento de 

Preceito Constitucional. 

Apesar de o MTST não ter

 legitimidade para ajuizar 

essa ação, Alexandre de 

Moraes não se manifestou

 sobre o assunto.


Estadão