terça-feira, 2 de maio de 2017

"Tratar dos pobres é impedir que os pobres tratem de nós", por João Pereira Coutinho

Folha de São Paulo


Tive bons professores. Um deles foi John Kekes. O nome talvez não seja conhecido como deveria. E o fato de ser conservador não ajuda, embora o seu conservadorismo seja assaz heterodoxo.

Sei apenas que Kekes ajudou a mim: os seus melhores livros, como "The Morality of Pluralism" ou "A Case for Conservatism", tiveram enorme influência no meu trabalho.

Na passada semana, quando ele regressou a Lisboa para dar aulas no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, também eu regressei à condição de estudante para ouvi-lo.


Angelo Abu/Folhapress
Ilustração João Pereira Coutinho de 2.mai.2017


Primeiras impressões: passaram 16 anos, e o filósofo, aos 81, continua na mesma. 

Curioso: li em tempos que a pintura era a arte que melhor promovia a longevidade. Os grandes mestres, regra geral, atingiram idades respeitáveis.

Pintar, sobretudo em pé, ajuda à manutenção da forma física.

Se isso é verdade, os filósofos também não têm razões de queixa. Em dois dias de aulas, foi impressionante ver um homem de 81 anos com uma clareza e intensidade de pensamento que nem sempre encontramos em gente de 30 ou 40.

O seminário, intitulado "The Art of Politics", pretendeu apontar três erros maiores do liberalismo, entendendo-se por liberalismo a sua versão moderna, progressista, igualitária.

O primeiro desses erros é a crença de que o liberalismo é compatível com o pluralismo. Não é, argumenta Kekes. Se o liberalismo tem como missão fundamental alargar a autonomia do indivíduo, isso significa que o valor da autonomia tem sempre prioridade em relação aos restantes valores.

O pluralismo defende que os valores são múltiplos, incompatíveis, incomensuráveis. O liberalismo, ao conceder prioridade ao valor da autonomia, é uma forma de monismo, não de pluralismo.

O segundo erro é a incapacidade do liberalismo para lidar com o mal. Pior: se o liberalismo está comprometido com o alargamento da autonomia individual, então também estará comprometido com a possibilidade de aumentar a ocorrência desse mal.

O terceiro erro é que a concepção liberal de justiça é uma forma de injustiça (John Rawls foi o alvo). Se a redistribuição de recursos tem em conta aquilo que as pessoas precisam, e não o que elas merecem, a justiça liberal é cega para questões de caráter –e de mérito.

São três argumentos poderosos que convidaram ao debate vivo –e a discórdias várias. No caso, minhas.

Concordo com a primeira premissa: se o liberalismo tem a autonomia individual como valor supremo, isso significa que não é possível aceitar, ao mesmo tempo, a noção de que os valores podem ser incompatíveis e incomensuráveis. Não é possível conservar o bolo e comê-lo.

Porém não subscrevo a ideia contrária de que não é possível garantir a prioridade incondicional de certos valores –valores básicos que protegem a dignidade da natureza humana– em relação aos outros. Sem uma sociedade decente, não há pluralismo para ninguém.

Sobre o mal, o raciocínio de Kekes é de uma lógica exemplar: se a natureza humana é ambígua e se o mal também é cometido por seres autônomos, então o alargamento da autonomia pode significar um acréscimo de mal.

O problema, penso eu, é que uma limitação excessiva da autonomia individual impedirá também o florescimento do bem. E a única forma de limitar o mal –pela lei, obviamente– implica uma sociedade que foi capaz de gerar e proteger os seus bens fundamentais.

Finalmente, a justiça. Concordo com Kekes que o liberalismo, ao redistribuir recursos sem fazer perguntas de ordem moral, é uma caricatura da noção clássica de justiça. Ajudar alguém que sofreu o infortúnio da doença é diferente de ajudar um preguiçoso profissional.

Mas, ironicamente, a minha posição é mais conservadora do que a de Kekes:

ajudar quem não merece também pode ser o preço a pagar por uma paz social que a pobreza extrema ameaça. Para repetir o célebre adágio, tratar dos pobres é uma boa forma de impedir que os pobres tratem de nós.

Passaram 16 anos. No final das aulas, cumprimentei o meu velho professor com a sensação melancólica de que talvez não voltaremos a nos ver.

Ele, com um sorriso, disse-me: "Gostei das suas observações".

Obrigado, professor. Mas elas não existiriam se as suas não tivessem existido primeiro.