terça-feira, 30 de maio de 2017

'House os cards' - Brutal luta de Underwood mostra que no Brasil o cenário é mais desolador


Cena de 'House of cards' Foto: David Giesbrecht / Netflix

Pedro Dória - O Globo


Há um momento num dos primeiros episódios da quinta temporada de “House of cards”, que chega hoje à Netflix, no qual o presidente americano Frank Underwood explica à sua mulher, Claire, por que ele deve ser reconduzido à Casa Branca. “O povo não sabe o que é melhor para ele”, diz. No rosto e na voz do ator Kevin Spacey há tanto desdém quanto arrogância e convicção. “O povo é como o filho que não tivemos. Precisamos guiá-lo.” O casal está perante um óleo de George Washington, o ícone mítico que primeiro comandou o Executivo americano. E ambos, tanto Frank quanto Claire, têm pelos ideais daqueles fundadores da República americana o mais completo desprezo.


São instantes assim que fazem de “House of cards” uma série especial. Políticos, quaisquer políticos, são o grande mistério das democracias. Por trás de cada sorriso e aperto de mão, de cada discurso carregado com as doses certas de emoção e razão, eles nos deixam sempre com a dúvida: no que realmente acreditam? Sobre o que conversam quando as portas estão fechadas? Serão realmente honestos? Dizem de fato o que pensam? “House of cards” é uma distopia, uma fantasia extremada que nos leva ao pior de todos os cenários. Nele, a luta política é brutal, e o jogo se dá entre gente que não tem qualquer caráter, de um lado, e aqueles cuja personalidade é fraca demais para combatê-los, do outro. No mundo de “House of cards”, torcer por qualquer um dos partidos é um exercício extremo de ingenuidade. Ninguém está do lado do eleitor.

A série chegou à televisão em 2013, ano zero da crise política brasileira. Em junho daquele ano, milhões de brasileiros tomaram as ruas para se queixar de que o Estado lhes servia mal. Em julho, a Polícia Federal descobriu que o doleiro Alberto Youssef tinha uma relação de trocas de presentes com o diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Dali nasceria a Lava-Jato. Mais de uma vez, e não sem razões várias, comparou-se a série com a política brasileira. Frank Underwood, sugere a piada fácil, é um amador perante os nossos políticos. Dependendo de quem faz a comparação, Underwood é Lula, ou Eduardo Cunha, ou Michel Temer, tantos outros.

A piada fácil esconde uma questão séria. Porque temos indícios suficientes que permitem uma comparação real entre a ficção americana e a realidade brasileira. São as gravações:

a conversa ligeira entre Lula e Dilma, os diálogos de Sérgio Machado com Renan Calheiros, José Sarney e o impagável Romero Jucá. Além, é claro, das trocas de Joesley Batista com Aécio Neves e Michel Temer. Esses fragmentos fizeram mais para revelar algo sobre como esses políticos verdadeiramente são do que qualquer outro episódio na História brasileira.

O impacto de “House of cards” se dá, em grande parte, por conta do recurso narrativo que deu a William Shakespeare seu brilho. Todas as personagens têm um quê de extremadas.

É como se ninguém tivesse superego para lhes disfarçar as vontades do inconsciente. As pequenas vilezas do cotidiano ganham dimensão. Todas as tramoias são explicitadas, nada fica subentendido. Tudo o que cada um pensa, sente e faz é mostrado com clareza, e por isso mesmo o resultado é demasiadamente humano. Assim, na toada shakespeariana, sempre que necessário o protagonista rompe a quarta parede, encara o espectador no olho e explica o que está ocorrendo no jogo de intenções.

NO BRASIL, MEDO E CUMPLICIDADE

Na realidade brasileira, nada é direto e muito fica subentendido. Nenhum dos políticos gravados se porta como um Frank Underwood que, dedo em riste, dá ordens e deixa claro o que espera de todos. Pelo contrário: todos se veem como cúmplices que compreendem o jogo que disputam. São parceiros. Essa cumplicidade se mostra na recomendação de Temer — “tem que manter isso, viu?” —, ou no pacto sonhado por Jucá — “o Michel forma um governo de união nacional, faz um grande acordo, protege o Lula, protege todo mundo, este país volta à calma”. A cumplicidade se dá, até, no tom corriqueiro como Dilma combina com Lula sua nomeação para um ministério acaso corra risco de ser preso: “tô mandando o Bessias junto com o papel, só usa em caso de necessidade”.

Por trás das portas, na vida como ela é, nenhum dos políticos brasileiros se porta com a autoridade dos Underwood. Ninguém é capaz de fitar o interlocutor com austeridade e dar uma ordem inequívoca como Frank, assim como nenhum tem o porte ereto e elegante que ressalta o olhar frio de Claire. Não inspiram autoridade. São, pelo contrário, inseguros. Têm plena consciência do castelo de cartas que habitam. Enxergando sua fragilidade. Têm medo.

Mas há uma distinção maior. Esses vilões, Frank e Claire, têm também muita clareza de seu objetivo. Querem poder. Na Brasília revelada pela Lava-Jato, tanto faz quem está no poder, desde que o sistema se mantenha em equilíbrio. Assim, mesmo no governo petista, um senador tucano terá seu espaço. O objetivo final da engrenagem não é levar um ou outro ao poder, e sim manter o fluxo de dinheiro para todos.

O Brasil não é “House of cards”, e isso, na verdade, é ainda mais desolador. Aos fãs da série resta um único consolo: a quinta temporada é espetacular.

Robin Wright e Kevin Spacey em cena de 'House of cards' Foto: David Giesbrecht/Netflix / David Giesbrecht/Netflix