Ninguém vai deixar seus negócios à espera do fim da crise,
nem os problemas darão trégua
Bateu em R$ 4,55 trilhões, valor muito maior que o da produção anual de qualquer outro país sul-americano, a dívida bruta do governo geral brasileiro. Essa era a posição de abril, segundo o último relatório das contas consolidadas do setor público. Esse monte de papagaios corresponde, pelo critério usado no Brasil, a 71,7% do produto interno bruto (PIB), valor adicionado da produção de bens e serviços – carros, aviões, tecidos, vestuário, bicicletas, cervejas, macarrões, óculos, sapatos, celulares, televisores, assistência médica, espetáculos, cortes de cabelo, jogos de futebol, telefonemas e tantos outros itens consumidos e usados no dia a dia dos brasileiros ou exportados. Pelo padrão brasileiro, a conta exclui os títulos do Tesouro na carteira do Banco Central (BC). Pelo método usado no Fundo Monetário Internacional (FMI), sem essa exclusão a dívida pública brasileira já chegou a 78,3% do PIB no ano passado, deve atingir 81,2% neste ano e alcançar 87,8% em 2022. Como esse padrão é aplicado aos 189 países-membros da instituição, os dados do Fundo são úteis para comparações internacionais.
O endividamento público brasileiro é muito maior que o da maior parte dos demais emergentes, de acordo com os números do FMI. Para a média das economias emergentes, o endividamento do governo geral ficou em 48,6% do PIB em 2016, deve chegar a 49,8% neste ano e aumentar até 52,4% em 2022. Na América Latina os números correspondentes a esses anos são 60,1%, 60,7% e 62,5%. Essas médias são obviamente afetadas pela posição brasileira e, em menor grau, pela situação de uns poucos países, como o Uruguai (60,9% no ano passado e 64% em 2022).
É bobagem comparar a dívida pública brasileira com as de países desenvolvidos, como os da Europa. Tesouros europeus podem ter compromissos proporcionalmente muito maiores, mas suas condições de financiamento são imensamente mais favoráveis. Podem rolar suas dívidas pagando juros muito baixos e, em alguns casos, negativos. No Brasil, os títulos vinculados, por exemplo, à Selic, a taxa básica de juros, pagam 11,25% ao ano. Há outras formas de remuneração, mas todas são muito mais pesadas que os custos suportados pelos governos do mundo rico.
Algumas outras diferenças podem tornar mais claro esse ponto. O crédito soberano do Brasil foi classificado no grau de investimento durante alguns anos, mas perdeu essa qualificação em 2015. Em 2016 as três maiores agências de avaliação de risco cortaram a nota brasileira mais uma vez, deixando-a dois níveis abaixo do chamado padrão de bom pagador. No jargão do mercado, papéis alojados no grau especulativo são também chamados de lixo (trash). Esse apelido pode ser um exagero no caso brasileiro, mas seria uma enorme tolice menosprezar o problema.
Os dois cortes da nota, no segundo semestre de 2015 e no primeiro de 2016, foram respostas das três principais agências – Standard & Poor’s (S&P), Moody’s e Fitch – a decisões fiscais irresponsáveis do governo da presidente Dilma Rousseff. Nem todos se lembram, mas ela realizou a rara façanha de provocar duas quedas na classificação brasileira de risco nos meses finais de seu desastroso mandato. As pedaladas, tema central de seu processo de impeachment, foram uma pequena parcela dos erros e desmandos cometidos na condução das finanças federais entre 2011 e o primeiro trimestre de 2016. O rebaixamento da nota de crédito soberano arrastou a classificação de muitas instituições financeiras e outros tipos de empresas, tanto estatais quanto privadas.
A inflação marca outra diferença considerável entre o caso brasileiro e o das economias europeias. Na zona do euro, a autoridade monetária vem batalhando há anos, com sucesso até agora limitado, para elevar a inflação até 2% ao ano. Para isso tem emitido montanhas de dinheiro e mantido os juros em níveis muito baixos. No Brasil, a inflação persistente e muito acima dos padrões internacionais foi combatida com juros elevados. Com a recessão e o crédito apertado, a alta de preços começou a perder vigor no ano passado. Em outubro o BC começou a reduzir os juros básicos, baixando-os de 14,25% para os atuais 11,25%.
Também a inflação, muito alta pelos padrões internacionais e certamente nociva por qualquer padrão razoável, tem contribuído para a manutenção de juros elevados e, como consequência, para encarecer o serviço da dívida pública. Mas a causalidade, nesse caso, opera em dois sentidos. De um lado, a inflação complica a gestão da dívida, por causa dos juros necessários à contenção dos preços. De outro, o desarranjo amplo e permanente das contas públicas cria pressões inflacionárias e reduz a eficácia da política monetária. Não se pode romper esse jogo de forma duradoura sem o conserto das contas de governo. Sem isso haverá sempre o risco de um repique inflacionário.
Com a crise política, a S&P decidiu pôr em observação o quadro brasileiro, com possibilidade de novo rebaixamento da nota. A nova condição foi estendida a 38 instituições financeiras, na maior parte sólidas, e a 57 empresas. Na sexta-feira, a Moody’s também anunciou o risco de rebaixamento.
Pode-se discutir se essa extensão é adequada, mas nenhuma pessoa responsável pode simplesmente menosprezar alguns fatos. O mundo continua a rodar, enquanto se desdobra a crise política brasileira. As agências de classificação têm de entregar serviço ao mercado. O mercado continua funcionando, por enquanto sem criar problemas muito sérios. Mas ninguém vai abandonar seus interesses à espera da solução das encrencas brasileiras. O banco central americano poderá em junho elevar de novo os juros básicos. Também isso poderá afetar o País.
Enfim, será preciso continuar o trabalho, complicadíssimo e nem sempre bem aceito, de resgatar as contas públicas e fortalecer a saúde fiscal com a reforma da Previdência. Cuidar do jogo político sem levar em conta esses dados pode ser desastroso. Quantos, em Brasília, têm consciência disso?