A crise é séria e ameaça as conquistas atingidas neste primeiro ano do governo Temer, bem como o prosseguimento das reformas. Sem elas o nosso bem-estar estará comprometido pelas próximas décadas. A saída é inteiramente nossa, não serão os marcianos que vão equacioná-la. Ou nos entendemos, ou nos inviabilizamos como país.
Como frisa o mestre Antônio Paim na apresentação ao Curso de Introdução à Ciência Política (edição coordenada por ele, com a colaboração de Leonardo Prota e minha, Londrina: Edições Humanidades, 2002, cinco volumes), “as instituições do governo representativo não caem do céu; somos nós que temos de construí-las”. E a construção delas pressupõe dois aspectos: um estrutural, outro moral.
Tratarei do primeiro. Trata-se de dar uma base confiável aos nossos partidos políticos, que ainda são apenas “blocos parlamentares”, ou seja, falando em linguagem carnavalesca, têm batucada sem enredo. Ora, partidos políticos para valer são organizações que visam à conquista do poder e contam com um programa definido para esse objetivo. De novo em linguagem carnavalesca, são como escolas de samba, que têm batucada e enredo. Este último constituiria, nas agremiações partidárias, a parte programática, alicerçada em sólida doutrina.
Nós, brasileiros, como nação não somos nem melhores nem piores do que outros povos. Temos as nossas qualidades e os nossos defeitos. Mas, do ângulo das estruturas políticas, somos relapsos. Não conseguimos estruturá-las a contento, de acordo às exigências prementes dos tempos atuais. A falha principal está em não termos dotado as nossas organizações político-partidárias de uma estrutura sólida que garanta a sua permanência e a sua eficácia na representação de interesses. É lógico apenas que, se em 30 anos de prática democrática não conseguimos fazer o dever de casa, estejamos colhendo agora os amargos frutos do descaso no item construção de instituições republicanas, cujo principal degrau consiste em garantir uma representação confiável. Como não a temos, ficou substituída, nestas três últimas décadas, pela mágica dos marqueteiros, aliada à improvisação e à falta de escrúpulos dos políticos populistas, que vingam, como moscas no lixo, nessa ausência de instituições representativas.
Como lembrava Bolívar Lamounier em recente artigo nesta página (Mais uma vez, uma nau sem rumo?, 20/5, A2) , citando texto escrito por ele em 1985 para a Comissão Afonso Arinos, encarregada de elaborar um pré-projeto de Constituição , “(...) o resultado de nossa descontínua história partidária, com poucas exceções, fora uma sucessão de sistemas frágeis e amorfos (...) uma estrutura mais forte dificilmente se constituiria a partir de uma organização institucional que combinava o regime presidencialista com a Federação, um multipartidarismo exacerbado e um sistema eleitoral individualista, frouxo e permissivo. Para que a redemocratização chegasse a bom porto era, pois, imperativo adotar outro conjunto de incentivos, entre os quais o voto distrital”.
Na contramão do que deveria ser feito, a intelligentsia brasileira desconheceu essa situação catastrófica da nossa representação. A respeito, frisa Bolívar Lamounier: “Poucos anos mais tarde o meio acadêmico acolheu um entendimento precisamente oposto. Nossos partidos e balizamentos institucionais seriam perfeitamente adequados e não seria exagero dizer que se incluíam entre os melhores do mundo. Não representavam nenhum risco para a estabilidade democrática, muito menos para a governabilidade. (...) A tese da fragilidade partidária não passaria de um mito”.
Essa falta de visão do meio intelectual, aliada ao imediatismo dos políticos, produziu o efeito perverso a que estamos a assistir e que Lamounier sintetiza assim: “Quem tem olhos de enxergar sabe que praticamente todos os partidos couberam no bolso de duas empresas, a Odebrecht e a JBS. (...) Ou seja, o cartel das empreiteiras, Eike Batista e os irmãos Joesley e Wesley mandavam muito mais do que centenas de deputados eleitos pelo voto popular. Em 2010, três grandes eleitores – Lula, Marcelo Odebrecht e o marqueteiro João Santana – substituíram-se à grande massa votante e enfiaram Dilma Rousseff pela goela abaixo dos brasileiros”.
As coisas mudaram de lá para cá, porém de maneira fortuita, como frisa o sociólogo. “O quadro acima se alterou graças a dois fatores principais: o instituto da delação premiada e a circunstância até certo ponto fortuita de o mensalão ter caído nas mãos de Joaquim Barbosa e o petrolão, nas do juiz Sergio Moro”.
A respeito da oportunidade perdida em relação à Constituição de 1988, lembro que, nos trabalhos de elaboração dos aspectos políticos do texto, com o meu mestre Antônio Paim prestei assessoria ao então senador José Richa, do antigo MDB (PR), na comissão presidida por ele. Richa tinha decidido apoiar a inclusão do voto distrital no texto constitucional. Teria sido um passo definitivo rumo à consolidação de uma sólida representação dos interesses dos cidadãos, abrindo espaço importante para a sociedade controlar o jogo político-partidário.
A proposta do senador Richa, no entanto, naufragou no seio da comissão. O autor do desfecho negativo foi um membro do mesmo partido de Richa, o senador Mário Covas, que não queria que se mexesse na velha legislação existente, que consagrava o voto proporcional e abria espaço para as alianças de legenda.
Covas levou um agressivo grupo de sindicalistas representantes dos estivadores do Porto de Santos, seu reduto político. Diante desses “argumentos”, nada pôde ser feito e a adoção do voto distrital ficou para as calendas gregas.
*COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS DA UFJF, PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, É DOCENTE DA FACULDADE ARTHUR THOMAS, EM LONDRINA