Vocês se lembram, não? O ano de 2015 ainda não acabou. Nesta terça, termina o recesso do Congresso Nacional. E esse clima de relativa calmaria, só quebrado pelas revelações nada surpreendentes sobre as folias imobiliárias de Lula, chega ao fim. A Câmara entrará com embargo de declaração no Supremo para saber, afinal de contas, que diabo decidiu a Corte quando resolveu atravessar a rua, meter-se onde não era chamada e determinar o rito do impeachment.
O que será exatamente que pretenderam os doutores quando impuseram à Casa uma comissão única do impeachment, indicada pelos líderes, mas que precisa ser votada? Votar, então, pra quê — e voto aberto? Se ela for rejeitada, acontece o quê? Os líderes continuam a indicar uma comissão única e o plenário continua a votar na falta de alternativas, é isso? É surrealista, para dizer pouco.
O ministro Roberto Barroso, aquele que gosta de ler textos pela metade (apenas até onde coincidem com suas teses), deve ter uma resposta à altura do direito criativo, que se tornou a sua especialidade.
Publicidade
Há mais: o Supremo decidiu também que o Artigo 86 da Constituição não vale. Lá está escrito:
“Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.”
“Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.”
“Será” quer dizer… “será”. Terceira pessoa do verbo “ser” no futuro do indicativo, que é o modo da certeza, não da dúvida. Sim, a decisão cabe ao Senado, como o texto deixa claro, mas, em nenhum momento, se depreende daí que a Casa possa ignorar o que demandou a Câmara. Até porque, ora vejam, o presidente pode ser absolvido.
Os ministros que deram ao Senado o poder de recusar a instauração do processo fraudaram a Constituição e ignoraram o texto. É isso mesmo? Porque a Constituição continua explicita no Artigo 86, a saber:
§1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I – nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;
II – nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
§1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I – nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;
II – nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
Notem que o Inciso I do Parágrafo 1º tem uma oração condicional: nas infrações penais comuns, o Supremo pode ou não receber a queixa crime: ali está o “se”. Assim, se o STF aceitar, afasta-se o chefe do Executivo; se não aceitar, não. E extingue-se a causa.
No Inciso II, não há condicional nenhuma. Temos apenas o adjunto adverbial de tempo: o presidente se afasta “após a instauração do processo pelo Senado Federal”. Em nenhum lugar está escrito que o Senado pode ignorar a Câmara e não instaurar o processo. Não há “se” nenhum.
Será que ministros do Supremo já estão com autoridade para fraudar também a gramática?
Nos embargos de declaração, essas coisas terão de ser debatidas de novo, sim. E é claro que não se vai instaurar comissão nenhuma até que essas coisas estejam resolvidas — o que deve ficar para março.
Cunha e o Conselho de Ética
O processo contra Eduardo Cunha corre no Conselho de Ética. Há lá uma penca de recursos ainda dos aliados do deputado, que pretendem fazer o processo recuar à estaca zero. Há firulas do Regimento Interno que podem dar amparo à manobra.
O processo contra Eduardo Cunha corre no Conselho de Ética. Há lá uma penca de recursos ainda dos aliados do deputado, que pretendem fazer o processo recuar à estaca zero. Há firulas do Regimento Interno que podem dar amparo à manobra.
Por falar em Cunha, o Supremo em breve terá uma outra tarefa: decidir se acata ou não a Ação Cautelar movida por Rodrigo Janot, que pede seu afastamento da Presidência da Câmara, como quer o Planalto. Não parece que a maioria dos ministros esteja disposta a tanto. Janot diz que Cunha usa o cargo para impedir a investigação. Problema desse argumento: se ele estivesse fazendo algo não regimental, seus adversários já teriam recorrido ao Supremo para anular a decisão. Se não o fizeram, é porque não viram transgressão. Mas, se elas não existem, afastar por quê?
Notem: Cunha, a meu juízo, já deveria ter deixado a Câmara faz tempo. Nesse caso, no entanto, o procurador-geral terá de provar que ele tem de ser afastado antes de qualquer julgamento porque teria transgredido o Regimento. Nos bastidores, a avaliação é que o Supremo não entra nessa.
Sim, o clima vai voltar a esquentar. Mas, obviamente, só depois do Carnaval.