domingo, 1 de março de 2015

"Incongruência de outra era", por Dorrit Harazim

O Globo

51% da população americana já se declaram favorável à legalização da maconha


Ao primeiro minuto da quinta-feira passada a posse e uso de maconha deixaram de ser proibidos em Washington, capital dos Estados Unidos. Nas eleições gerais de novembro último, 70% dos eleitores do distrito federal americano haviam aprovado a medida, somando-se a quatro dos 50 estados do país onde a medida já vigora (sem falar nos 32 estados com alguma forma de legalização do uso medicinal da erva, e outros 12 seguindo para o mesmo caminho).

Mas convém esclarecer viajantes brasileiros que, no caso específico de Washington, a compra e venda da droga continuam proibidas. A troca de mãos só é permitida como repasse, sem comercialização. Ademais o usuário precisa ter pelo menos 21 anos de idade, a posse é limitada a 60 gramas e o cultivo em casa não pode exceder seis plantas.

Mesmo assim, a adesão de Washington tem peso histórico e vem confirmar a curva ascendente da mudança: segundo a mais recente pesquisa Gallup, 51% da população americana já se declaram favorável à legalização da maconha.

Agora tome-se o caso de Weldon Angelos. Em 200
2, quando tinha 24 anos, dois filhos pequenos e uma pequena produtora musical em Salt Lake City, ele também comercializava pequenas quantidades de maconha. Nada que excedesse muito o máximo agora permitido na capital do país.

Naquele ano, o FBI comprou a droga do jovem em três ocasiões, sempre através de um agente infiltrado, num total de mil dólares. Na vez da última armadilha, Angelos foi preso em flagrante e julgado por quatro crimes: três vezes venda de narcóticos, mais o porte de uma arma durante a venda. Acabou sendo condenado a 55 anos de reclusão em regime fechado, sem direito à condicional. Ou seja, mais de meio século de prisão sem ter cometido qualquer crime violento.

O julgamento de Angelos deu-se de acordo com a legislação de penas mínimas mandatórias instituída na década de 1980 pelo governo de Ronald Reagan. Revelou-se tão ineficiente e desprovida de nexo quanto a guerra ao terror desencadeada por George W. Bush duas décadas depois. Só agora a legislação que rege a chamada guerra às drogas começa a ser revista — até por pesar no bolso do contribuinte.

Hoje com 37 anos de idade, Angelos já cumpriu 13 de detenção. Os filhos ainda adolescentes serão homens maduros quando o pai sair octogenário da prisão. Seu encarceramento terá custado U$ 1,5 milhões ao Erário do país. E não se trata de caso isolado. São 210 mil os presos da guerra às drogas que cumprem décadas de reclusão por crimes não violentos. Quem multiplicar o custo de um Angelos pelos outros 210 mil chegará a uma conta de mais de US$ 3 bilhões. Mesmo sendo falaciosa por não conseguir prever a longevidade de cada detento, a conta não agrada nem aos defensores da medida.

Esta semana, num raro desabafo público de juiz federal, o homem que condenou Angelos aceitou dar entrevista à rede de TV americana ABC. “O sistema me forçou a isso”, resumiu Paul Cassel, hoje professor de Direito na Universidade de Utah, aposentado dos tribunais.

Referia-se à pena mandatória mínima que ata as mãos dos juízes. Concebida para enviar um recado à sociedade, a mensagem acabou se perdendo no meio do caminho. Foi precursora da não menos desastrosa Lei dos Três Delitos (Three Strikes Law), instituída na Califórnia e 20 outros estados a partir de 1994.

Na época em que proferiu a sentença mandatória de 55 anos para Angelos, Cassel já havia alertado seus pares para a idiossincrasia. “Fosse o réu um sequestrador de avião, ele receberia uma pena de 24 anos; se fosse terrorista, seriam 20 anos; estuprador de menor, sairia livre depois de 11 anos. Isto não está correto”, declarara em recinto fechado.

Nada a fazer do ponto de vista jurídico. Por ironia, a única pessoa que poderia, em tese, mudar o destino de Angelos mora na Washington que acaba de liberar o uso da maconha. Esse homem é Barack Obama, que, em sua autobiografia, narrou ter experimentado a droga quando jovem e como presidente dos Estados Unidos defende a sua legalização. Em tese, ele poderia comutar a pena de um dos presos mas não das milhares de sobras da guerra às drogas.

Também a atual guerra ao terror tangencia o caso Angelos, só que de forma mais incongruente. Ele teve a pena agravada por andar armado, embora nenhuma lei o impedisse de ter comprado a arma legalmente. O mesmo critério não se aplica a suspeitos de terrorismo. Mesmo quando monitorados pelos serviços de inteligência, não são impedidos de adquirir armas e munição — ainda que esses artefatos, em tese, sirvam a futuros atentados.

Difícil entender uma babel jurídica que desde 2001 garante às 22 agências do Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos (a Homeland Security) um controle sem precedentes da sociedade americana, mas não interfere no acesso livre e legal ao bazar de armas do país.

Nenhum cidadão americano da chamada no-fly list do terror, da qual constam perto de um milhão de nomes com entrada ou saída vetadas, está impedido de entrar numa loja de armamentos e fazer sua feira. Basta que não tenha antecedentes criminais ou psiquiátricos. Quem continua a mandar nessa reserva de mercado é a poderosa Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), apoiada numa narrativa falaciosa da Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

Segundo levantamento feito pelo Government Accountability Office, um braço investigativo do governo, indivíduos monitorados pelos serviços de segurança tentaram comprar armas ou explosivos em 2.233 ocasiões ao longo da última década e em 90% desses casos saíram com o que buscavam.

Justo na semana em que três suspeitos de apoio aos terroristas do Estado Islâmico são detidos em Nova York e que a diáspora de jihadistas autônomos ou de pequenas células dormentes aterrorizam o Ocidente, casos como o de Weldon Angelos parecem aberrações de outra era. E são.