O julgamento de Jair Bolsonaro por causa do tumulto do 8 de janeiro é cercado de ilegalidades — e de ministros que abertamente têm lado político
N esta semana, os advogados do ex-presidente Jair Bolsonaro apresentaram um pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que os ministros Flávio Dino e Cristiano Zanin não participem do julgamento que deve torná-lo réu pelo tumulto ocorrido no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Mais: reclamaram que um caso tão importante para a história do país como esse deveria ser analisado pelos 11 integrantes da Corte, e não só pela Turma de Alexandre de Moraes.
À luz do bom senso e do Direito, um julgamento que pode terminar numa eventual prisão de um ex-presidente da República deveria ser examinado pelos 11 ministros. Trata-se de um caso de repercussão nacional. Só isso já bastaria. Mas, em dezembro de 2023, a Corte decidiu que ações penais “originárias”, ou seja, aquelas que começaram no próprio tribunal, como é o caso da trama fantasiosa do 8 de janeiro, são de competência das Turmas.
Atualmente, o STF tem duas Turmas. A Primeira — que julgará o caso de Bolsonaro — é formada por Cristiano Zanin (presidente), Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Flávio Dino. A Segunda reúne Edson Fachin (presidente), Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Nunes Marques e André Mendonça. O atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, não participa de nenhuma delas. As votações, desde a pandemia de covid-19, costumam ser em home of ice — em alguns casos, os ministros só enviam seus votos pelo sistema.
No site do STF, o funcionamento das sessões virtuais é descrito exatamente assim: “No início da sessão, o relator lança no sistema o relatório e o voto do processo em julgamento. Em seguida, os demais ministros podem se manifestar, com quatro opções de voto: acompanhar o relator; acompanhar com ressalva de entendimento; divergir do relator; ou acompanhar a divergência”. Continua o site da Suprema Corte: “O acesso à íntegra dos votos e ao andamento do placar, em tempo real, pode ser feito por meio da aba ‘Sessão Virtual’, disponível na página de acompanhamento dos processos”.
Qualquer semelhança com um protocolo feito no Detran, uma queixa no Procon ou reclamação na prefeitura não é exagerada. Aliás, é assim que os advogados de pessoas presas há dois anos, com tornozeleiras ou às portas de serem julgadas pela confusão do 8 de janeiro têm acesso aos despachos do gabinete de Alexandre de Moraes.
Ele é responsável por 21 dos 37 inquéritos em andamento na Corte.
Os impedidos
Nos dois casos questionados pela defesa do ex-presidente, os argumentos pela suspeição dos ministros parecem óbvios. Aos fatos: Cristiano Zanin foi advogado da campanha do então candidato Lula da Silva. Ele liderou uma banca que promoveu a maior cruzada já vista no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra Bolsonaro e seus aliados e que se espraiou para punições contra jornalistas e influenciadores não alinhados ao petismo. Diariamente, o TSE foi acionado durante a corrida eleitoral para remover conteúdos contra Lula ou perfis nas redes sociais e multar quem não concordasse. O presidente do TSE na época era Alexandre de Moraes.
A banca de Zanin impediu, por exemplo, que Lula fosse chamado de amigo de ditadores latinos, como o venezuelano Nicolás Maduro — recebido meses depois por Lula em Brasília. Ou reportagens e postagens nas redes sociais que citavam investigações policiais sobre o elo de petistas com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC); ou ainda o sombrio assassinato do prefeito de Santo André Celso Daniel. No auge da censura, um documentário da produtora Brasil Paralelo, que recordava o atentado a faca contra Bolsonaro em setembro de 2018, foi censurado pelo TSE.
Aqui cabe a pergunta direta: se Zanin, hoje de toga, era o advogado eleitoral de Lula e a acusação contra Bolsonaro é de que ele rejeitou o resultado das urnas, por que isso não caracteriza o impedimento agora? Zanin tinha lado na eleição.
Não à toa, no ano passado, o próprio Zanin se declarou impedido na análise de um recurso de Bolsonaro no TSE para tentar reverter sua inelegibilidade pelo que falou sobre o processo eleitoral brasileiro numa reunião com embaixadores. O que mudou em um ano?
“Ou seja, os fatos foram lá imputados a Jair Messias Bolsonaro como violadores da legislação eleitoral e, por essa razão, o próprio ministro declarou-se impedido para atuar no feito quando de sua chegada ao STF. Esses mesmos fatos são agora imputados a Jair Messias Bolsonaro como violadores da legislação penal e, por essa razão, deve-se também declarar o impedimento para atuação no feito.” (Petição dos advogados de Jair Bolsonaro)
Sobre Flávio Dino, a questão também é aguda. Ele era ministro da Justiça naquela tarde de 8 de janeiro em Brasília. Na semana seguinte, disse numa entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, que assistiu à baderna “de camarote”. Tempos depois, quando uma CPI instalada no Congresso cobrou as imagens das câmeras do ministério, um prédio contíguo ao Palácio do Planalto, ele disse que elas sumiram — a empresa que armazena os dados havia apagado tudo. Os nomes de quem esteve nos corredores do ministério e o motivo da atuação tardia dos homens da Força Nacional de Segurança, reunidos em frente ao prédio naquele dia, são um mistério.
Não é só. As frases seguintes foram ditas por Dino antes de vestir a toga:
“O Bolsonaro não é apenas um seguidor do demônio; pra mim, ele é o próprio demônio.”
“Bolsonaro é mais próximo do diabo do que de Jesus Cristo. Se ele tivesse que se alinhar, se alinharia facilmente nas hostes do diabo, de Satanás, do demônio. Porque a construção cultural da figura do diabo, o que é que é? É o mal, é o contrário, é o violento, é o perverso.”
“O representante do diabo no processo eleitoral é o Bolsonaro, o que eu posso fazer?” Em 2021, Dino era governador do Maranhão. Ele processou Bolsonaro durante a pandemia de covid-19. Logo, a existência dessa queixacrime no passado coloca do mesmo lado parte e agora juiz, o que configura impedimento em qualquer tribunal.
Bolsonaro foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República como líder de uma organização armada — ainda que só tenham encontrado estilingues, bolas de gude e Bíblias. Nenhum revólver ou algo parecido foi apreendido. De acordo com a denúncia, o Brasil seria o primeiro caso na história de um golpe militar sem pólvora. Conforme o enredo montado pela Polícia Federal e referendado pelo Ministério Público, um grupo tomaria o poder depois do tumulto de 8 de janeiro. Outras 33 pessoas também foram denunciadas.
Partido do STF
Além dos dois casos citados pela defesa de Bolsonaro, outros ministros rasgaram a toga ao tratarem do tema publicamente. O episódio mais gritante foi o de Luís Roberto Barroso no palanque da União Nacional dos Estudantes (UNE), em julho de 2023, quando disse aos jovens comunistas: “Nós derrotamos o ‘bolsonarismo’”.
A frase lhe rendeu um pedido de impeachment no Senado por ferir a lei: ministros do Supremo não podem participar e — muito menos — tomar lado partidário. O pedido nunca foi analisado pelo ex-presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Meses antes, ainda no calor pós-urnas, Barroso entrou num bate-boca com um eleitor de Bolsonaro, numa calçada em Nova York, e tornou célebre a expressão “Perdeu, mané”. Foi essa a frase que a cabeleireira Débora dos Santos, mãe de dois filhos pequenos, presa até hoje no interior de São Paulo, escreveu com um batom na estátua de pedra erguida em frente ao STF na tarde do tumulto. Ela será julgada ainda neste mês e pode ser condenada a até 17 anos de cadeia (leia o artigo de Cristyan Costa). Barroso, talvez, poderia se julgar impedido de votar se o caso chegasse ao plenário.
O decano da Corte, Gilmar Mendes, disse recentemente que a catarse de janeiro foi pior do que o Mensalão — esquema de compra de votos no Congresso. O PT oferecia dinheiro de corrupção, sacado na boca do caixa por deputados. O escândalo marcou o primeiro governo Lula, rendeu uma CPI, em 2005, e só foi julgado pelo Supremo sete anos depois. Na época, foi de Gilmar Mendes o voto decisivo para condenar parte da quadrilha por lavagem de dinheiro.
Cármen Lúcia integra a Primeira Turma e está a cada dia mais alinhada ao gabinete de Alexandre de Moraes, a quem sucedeu no TSE e elogia rotineiramente. Seu voto sobre a censura prévia à produtora Brasil Paralelo, em outubro de 2022, é lembrado até hoje: “Parece censura; aliás, é censura, mas vai ser só desta vez”. Nada indica que ela vá mudar e contrariar Moraes. Dias Toffoli dedica-se hoje em dia a buscar vestígios da Lava Jato ainda não enterrados pelo STF. Como pouco se ouvem as vozes de Luiz Fux, Edson Fachin, André Mendonça e Nunes Marques, o roteiro do julgamento parece traçado.
Em tempo: a boa doutrina determinaria que Bolsonaro não era presidente em janeiro de 2023 e que ninguém preso tinha prerrogativa de foro. Portanto, o STF, última instância recursal, não é o juízo correto para nenhum deles. A lei diz que todo cidadão tem direito à reanálise de condenações por um tribunal independente — o chamado duplo grau de jurisdição obrigatório. Portanto, é o Supremo quem estaria impedido de julgar se não tivesse criado suas próprias leis.
Sílvio Navarro - Revista Oeste