Lewandowski confirma que ainda no berçário já era trapalhão
Q uinze meses depois de instalado no Ministério da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski descobriu que pouca saúde e muita saúva não são os únicos grandes problemas do Brasil. Além desses males diagnosticados pelo escritor Mário de Andrade, há um terceiro: “A polícia prende mal e o Judiciário é obrigado a soltar”, desandou. O comunicado que tentou consertar o estrago só serviu para reiterar que convivem numa só cabeça um trapalhão de nascença e um torturador do idioma. Nenhum tem remédio: não há esperança de salvação para quem diz uma coisa dessas no momento em que superjuízes togados fazem o diabo para provar que, ao conjugarem os verbos “prender” e “soltar”, nem a pior delegacia e a mais bisonha comarca dos grotões merecem um zero com louvor tão rotundo quanto os que o Supremo Tribunal Federal vem colecionando desde o fim da segunda década do século.
A ditadura do Judiciário tomou forma quando Alexandre de Moraes se nomeou primeiro-ministro e o STF virou parceiro do governo no consórcio apoiado pelo jornalismo estatizado. Mas a gestação do monstrengo começou no primeiro governo Lula. Até 2005, quando explodiu o escândalo do Mensalão, ser julgado no STF era o sonho de todo bandido com foro especial. Deputados que liquidavam inimigos pilotando motosserras, senadores que apertavam o gatilho com a naturalidade de pistoleiro de faroeste americano, pais da pátria que saqueavam cofres usando o crachá como gazua — todos se sabiam condenados à perpétua e doce impunidade. As coisas começaram a mudar quando a devassa do Mensalão avisou que estava em curso nas catacumbas do PT a corrupção institucionalizada.
Os juristas que ainda havia no STF entenderam que a coisa fora longe demais. Assustados, os quadrilheiros federais trataram de poluir a Corte com gente de confiança. Em 16 de março de 2006, com o governo ainda grogue com a entrada em cena da Procuradoria-Geral da República e do Supremo, Lewandowski foi premiado com uma toga. Até os bebês de colo sabiam que fora escolhido para impedir que o banco dos réus parecesse um viveiro de meliantes lulopetistas à espera da vaga na cadeia.
Lewandowski dedicou-se à missão em tempo integral. É compreensível que em 28 de agosto de 2007, às nove e meia da noite, tenha chegado ao restaurante em Brasília ansioso por comentar a sessão do Supremo Tribunal Federal que acabara de ser encerrada. Por expressiva maioria, fora aprovado o parecer do relator Joaquim Barbosa que transformava em réus 40 denunciados por envolvimento com o Mensalão. Lewandowski deixou a acompanhante na mesa, foi para o jardim na parte externa, sacou o celular do bolso do terno e, sem perceber que havia uma repórter da Folha por perto, ligou para um certo Marcelo. A conversa durou dez minutos.
O que a jornalista ouviu foi suficiente para constatar-se que a performance do devoto de Lula teve como narrador o trapalhão vocacional. “A tendência era amaciar para o Dirceu”, revelou já no início das confissões. “A imprensa acuou o Supremo. Todo mundo votou com a faca no pescoço.”
Todo mundo menos ele: só Lewandowski mandou às favas o parecer de Joaquim Barbosa e a catarata de provas do papel desempenhado por José Dirceu no esquema que garantia a aprovação de projetos do governo com propinas distribuídas regularmente entre parlamentares mais sensíveis a tais gentilezas. Ninguém divergiu do voto de Joaquim Barbosa mais que Lewandowski: 12 vezes. “Foi até pouco”, gabou-se na conversa com Marcelo: “Tenha certeza disso. Eu estava tinindo nos cascos”. Ele continuou tinindo nos cascos até aposentar-se, em 2023.
Enquanto a Lava Jato existiu, Lewandowski fez coisas de que até Deus duvida para paralisar o avanço da operação anticorrupção que prendia certo, nunca errava o bote, empilhava provas que inibiam protetores de culpados e reafirmava quase diariamente que a lei enfim passara a valer igualmente para todos. Veterano de guerras do gênero, esbanjou bravura nas batalhas travadas para deixar claro que o maior esquema corrupto da história foi invenção da CIA. Com a chegada de mais lewandowskis — Dias Toffoli, por exemplo — e a celebração da aliança com Gilmar Mendes e suas discípulas Cármen Lúcia e Rosa Weber, conseguiu tempo para ampliar o universo dos agraciados com a soltura errada.
Em 28 de julho de 2016, quando caprichava na pose de presidente do tribunal em recesso, Lewandowski revogou com um habeas corpus a prisão cautelar de Luís Fabiano Ribeiro Brito, integrante da organização criminosa Primeiro Comando da Capital. Segundo o Ministério Público do Ceará, o detento desembarcara em Fortaleza para cumprir a missão delegada pelo PCC: “Coordenar ataques à estrutura policial, planejando atingir batalhões, postos de vigilância, oficinas de manutenção de veículos de segurança, bem como atear fogo em viaturas e, principalmente, ceifar vidas de um número indeterminado de policiais”.
Investigações policiais haviam concluído que fora Luís Fabiano o organizador do ataque a um batalhão da Polícia Militar ocorrido em novembro de 2015. O ministro não se impressionou: “No caso, a prisão cautelar por longo prazo é desnecessária, pois não há alegação de que o acusado interferiu no processo criminal”, alegou o doutor. E liquidou a questão com uma extensa sopa de letras: “Da análise detida dos autos, constato a existência de constrangimento ilegal na manutenção da segregação cautelar, pois, como se sabe, a presunção de inocência é princípio fundamental, de tal sorte que a prisão, antes da condenação definitiva, é situação excepcional no ordenamento jurídico”.
Antes da criação por Alexandre de Moraes da gigantesca vara criminal que encarcera multidões e inventou o julgamento por lotes, ser preso pelo Supremo era uma façanha e tanto. Agora, os ministros já não se amparam na Constituição e nos códigos legais. Quem não ama Lula, não venera o Supremo nem se orgulha da urna eletrônica é extremista de direita, bolsonarista de alta periculosidade, inimigo da democracia, golpista irrecuperável e merece uma cela superlotada e uma tornozeleira eletrônica.
Quem esteve na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 merece a danação eterna, começando por uma temporada na cadeia nunca inferior a 14 anos. Quem votou em Lula merece compreensão e liberdade, mesmo que esgane a avó para embolsar o dinheiro da pensão. Vale tudo para prender e tudo vale para soltar. Débora Rodrigues não merece ser liberada para cuidar dos filhos. Merece 14 anos em regime fechado por ter transcrito numa estátua, com batom, uma frase celebrizada pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso.
Adriana
Ancelmo, ex-mulher e sempre comparsa de Sérgio Cabral, foi
condenada a 13 anos de prisão por lavagem de dinheiro e associação
criminosa. Saiu depois de três meses, para conviver com os filhos. Eles
certamente quiseram saber o que fez o pai para conseguir ser
condenado a mais de 400 anos no xilindró — e como fez o campeão
para ser devolvido à liberdade, depois de apenas seis anos, por um
generoso decano.
O que parecia um caso de disputa de poder já virou caso clínico. Ou o
Congresso toma jeito ou chama uma frota de ambulâncias.
Augusto Nunes - Revista Oeste