'Ministro, o senhor pausou esse caso por algo forte em seu coração. Eu tenho, sim, a esperança de que suas mãos ainda possam guiá-lo à misericórdia'
Nunca vou esquecer o dia ensolarado de inverno no seu amado Rio de Janeiro em que meu filho, carioca como o senhor, com apenas 4 anos, pegou um punhado de canetinhas e gizes de cera e transformou a porta do nosso apartamento em sua tela. Amarelo, azul e verde de vários tons — rabiscos por toda parte! Havia árvores, bola de vôlei, mar, carros, dinossauros, cachorros e até passarinhos… tudo junto em uma obra-prima caótica que parecia ser mais uma traquinagem do menino com cara e nome de anjo, mas também “encapetado”, como falamos carinhosamente em Minas, onde nasci.
Eu havia acabado de chegar dos Jogos Olímpicos de Atenas, depois de uma derrota inesperada nas quartas de final no vôlei de praia, e estava física e mentalmente exausta. Olhei a porta toda rabiscada e fiquei ali, com uma mão na cintura e outra no queixo, pronta para repreendê-lo. Então, Gabriel me olhou, os olhos arregalados com aquela mistura de travessura e medo, mas também orgulho, e disse: “Mamãe, eu fiz o Rio feliz porque você chegou e tudo com as cores do Brasil pra você!”. Fechei os olhos por um segundo, com vontade de chorar, e minha raiva derreteu. Peguei uma esponja, ajoelhei ao lado dele e disse que íamos limpar tudo. Em vão. Não consegui apagar aquele “presente” inocente cheio de traquinagem, saudade e amor de boas-vindas. É o que mães fazem — vemos o coração por trás da bagunça, guiamos, tentamos entender as intenções. Perdoamos. Mas hoje, escrevo ao senhor porque a bagunça de outra mãe, um rabisco passageiro, está lhe custando tudo — e são seus filhos que estão pagando o preço.
Ela se chama Débora Rodrigues dos Santos. Tem 40 anos, é cabeleireira em São Paulo, uma mulher que passa os dias desembaraçando nós e trazendo beleza ao caos para seus clientes. Uma profissional que, diante das cores e tintas, coloca amor em seu trabalho. É mãe, como eu, de dois meninos pequenos — Caio, de 10 anos, e Rafael, de 8 —, que antes puxavam seu avental e agora esperam a mãe sair de trás das frias paredes da prisão.
Em 8 de janeiro de 2023, envolvida no calor dos protestos em Brasília, ela pegou um batom vermelho e escreveu “perdeu mané” na estátua A Justiça, do lado de fora do Supremo Tribunal Federal. Um deboche, um eco das próprias palavras do ministro Barroso a um questionamento em Nova York em novembro de 2022, um ato de um segundo que já lhe roubou mais de dois anos de vida — e, se o ministro Alexandre de Moraes prevalecer, serão mais 14 anos encarcerada.
Ministro, apesar de hoje ser cidadã dos Estados Unidos e morar aqui na Califórnia há mais de 15 anos, eu amo e me preocupo com o Brasil. Por 22 anos defendi nossa bandeira pelas quadras no mundo com muito orgulho e alegria, mas, confesso, hoje está muito difícil entender como o Brasil chegou aonde estamos. Não sou a única triste com a situação em nosso país, e algo me diz que, no seu íntimo, o senhor sabe do que estou falando.
Como compreender um voto para que Débora fique trancafiada 14 anos em regime fechado, e que pague multas milionárias de uma conta de danos de R$ 30 milhões? Como achar normal que uma cabeleireira tenha sido colocada em um contexto como “uma peça num golpe” e uma ameaça à democracia com um batom, ministro? Por duas palavras numa estátua?
Há um mar de análises legais e políticas sobre esse caso, páginas de argumentos e precedentes, mas não estou aqui por isso. Estou aqui com um apelo misericordioso e sem filtros de um coração de mãe, para tentar mudar a lente do episódio para o custo humano: uma mulher definhando desde março de 2023, sua família destroçada deixada à espera por uma prisão preventiva que já dura dois anos — e seus filhos crescendo com um vazio onde ela deveria estar.
Não conheço Débora, sua família e advogados, e não falo em seu nome. Mas por ser mãe de um menino, hoje um rapaz de 24 anos, posso imaginar Caio, que tem 10 anos agora, provavelmente magro e barulhento como todos os meninos dessa idade. Talvez o tipo de menino que chuta bola até o sol se pôr e que volta para casa com os joelhos ralados e um sorriso, procurando a mãe para cuidar dele e ouvir suas histórias exageradas. Rafael tem 8 anos, talvez seja mais quieto, aquele que segura um bicho de pelúcia surrado à noite, que precisa da voz da mãe para espantar as sombras dos seus sonhos.
Esses não são apenas nomes, ministro Fux — são meninos que perderam sua âncora, crianças em formação cujo tempo precioso e irreparável de convivência com a mãe está escorrendo pelas mãos. São dois anos sem Débora bagunçar os cabelos deles, sem ouvi-la ralhar por trazerem lama para casa ou mandar que parem de brigar entre si — dois anos sem seus sussurros ao deitar, prometendo que amanhã tudo vai melhorar. E agora, mais 14 anos? Quando ela sair, Caio terá 24, a mesma idade do meu Gabriel hoje, mas sem a mãe que eu pude ser. Um homem que talvez nem reconheça o perfume dela. Rafael terá 22, a infância reduzida a um borrão de visitas a uma cela, o coração carregado de uma amargura que a Justiça, tão injusta, plantou.
Temos filhos, ministro Fux, e sei que o senhor já tem netos — quem sabe já imaginou, como eu, o pequeno Caio olhando pela janela, escondendo as lágrimas porque precisa ser forte pelo irmão menor, perguntando a quem cuida dele por que a mamãe ainda não voltou. Rafael, mais novo, talvez mais frágil, segurando uma foto dela, o dedinho traçando o rosto enquanto se pergunta se ela o esqueceu. Eles não entendem golpes ou leis de patrimônio — o que sabem é o som do riso dela, o cheiro da comida no fogão, o cantarolar desafinado enquanto varria o salão após um dia exaustivo. Débora era o mundo deles, trabalhando até tarde para comprar um tênis novo pro Caio, carrinhos pro Rafael — e agora esse mundo está preso por um rabisco que não machucou ninguém. O senhor os vê, ministro? Sente o silêncio à mesa de jantar, a cadeira vazia que ninguém ousa ocupar?
O senhor pausou essa tempestade em 24 de março, pedindo tempo para olhar mais de perto, e sou grata por isso — grata porque sei que o senhor enxerga além da cor do batom que Débora deixou na estátua, além da tinta que pode selar uma sentença cruel e injusta. Seu pai, um judeu romeno, fugiu de uma escuridão que devorava famílias inteiras, carregando as memórias de um povo que conheceu juízes sem alma. Nos pogroms da Europa Oriental, na máquina do Holocausto, tribunais não traziam justiça — entregavam morte, arrancando mães de seus filhos. Meninos como Caio e Rafael ficavam à deriva, cheios de dúvidas e medo, as mãozinhas vazias, suas vidas reescritas por decisões que viam ameaças na inocência, que puniam pais cujo único crime era estar do outro lado da ideologia cega de juízes políticos e impiedosos.
Com emoção e respeito, tento imaginar as histórias de seu pai, o peso silencioso de sua sobrevivência, e como isso pode ter lhe ensinado que a história não é só uma sombra; é um alerta sussurrando agora: “Isso é justiça?”.
E hoje, ministro, vejo ecos disso. Alexandre de Moraes diz que o batom de Débora era uma arma, e seu rabisco, um atentado violento à democracia — parte de um plano para derrubar o Estado. O ministro olha para Débora e vê uma criminosa. Aponta fotos em que ela sorria enquanto escrevia com o batom e diz que era “orgulho e felicidade” em profanar o símbolo do seu tribunal, como se aquele sorriso fosse prova de um plano sinistro. Ele a conecta a uma multidão que invadiu prédios — lugares onde ela nunca pisou — e joga sobre ela crimes pesados: golpe de Estado, associação criminosa armada, destruição de patrimônio. Tudo por uma marca de batom vermelho que saiu com água e sabão no dia seguinte.
Ministro, repito: não conheço Débora e sua família, mas é evidente que ela não é o ser abjeto e violento que tentam empurrar sem piedade para que narrativas políticas sejam alimentadas. Débora não é uma revolucionária tramando nas sombras. É uma mãe que corta cabelo para pagar as contas, que provavelmente corre atrás do Caio com uma vassoura por derrubar suco, e que embala o Rafael com um beijo e uma promessa de que tudo vai ficar bem.
Escrevo esta carta emocionada, ministro. A mente sempre focada da atleta profissional e agora jornalista, bem treinada para controlar as emoções, não consegue segurar as lágrimas que brotam nos olhos. Penso naquelas famílias judias de novo, em juízes que transformavam atos fugazes em sentenças eternas — ou pior. Sua herança conhece esse custo, o ferrão do poder sem misericórdia. Débora não é santa, mas não é a vilã que querem desenhar. É uma mulher que tropeçou numa multidão, que escreveu um deboche, não um manifesto. Seus filhos precisam da voz dela no café da manhã, das mãos dela trançando suas vidas de volta — não da perfeição fria de uma estátua.
Eu imploro, de meu coração ao seu, que a veja pelos olhos de uma mãe, pela lente de uma história que o senhor carrega no sangue. Rezo para que seja o juiz íntegro que lembra que a Justiça foi feita para proteger famílias, não apenas concreto.
Caríssimo ministro Fux, dê a Débora a chance de voltar para casa, de limpar aquela parede rabiscada pelos filhos, de abraçar sua família novamente. Deixe-a colocar curativos nos arranhões do Caio, ler histórias para o Rafael, estar por perto quando eles caírem e quando criarem suas próprias asas para voar. Não deixe esses meninos crescerem com memórias que desbotam como aquela mancha de batom. Ministro, o senhor pausou esse caso por algo forte em seu coração.
Eu tenho, sim, a esperança de que suas mãos ainda possam guiá-lo à misericórdia. O senhor, que falou da “humildade judicial” como um farol para o Judiciário, pode corrigir essa atrocidade. Escrevo com humildade também, não com palavras difíceis ou códigos, mas com o coração aberto de uma mãe que sabe o que é segurar um filho e teme por outra que não pode. Pela humanidade e retidão, deixe a história de Débora terminar com o riso dos seus filhos, não com ecos de um passado que juramos nunca repetir.
Com todo o meu respeito, minha esperança e as lágrimas de uma mãe,
Ana Paula Henkel
Revista Oeste