O açodamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal para prender Jair Bolsonaro abriu uma cratera no ordenamento jurídico e no Estado de Direito no país
O julgamento envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) teve o desfecho esperado por seus adversários, na política e na imprensa, desde o primeiro minuto do tumulto ocorrido no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Nesta semana, ele foi responsabilizado, independentemente da existência de provas, por tentar dar um golpe de Estado no Brasil — tampouco importa se esse golpe passou perto de acontecer ou não. Bolsonaro agora é réu.
A Primeira Turma do STF, presidida por Cristiano Zanin, ex-advogado do presidente Lula da Silva, decidiu que Bolsonaro responderá a uma ação penal por cinco crimes: integrar uma organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio público, e deterioração do patrimônio tombado. A pena máxima é de 40 anos de prisão.
O relator do processo é o ministro Alexandre de Moraes, mas também votaram Zanin, Flávio Dino, Cármen Lúcia e Luiz Fux — este último, ainda que pisando em ovos, abriu algumas divergências (leia mais abaixo). Bolsonaro acompanhou o primeiro dia de julgamento, na terça-feira, 25, da primeira fila da sala do STF. No segundo dia, assistiu à transmissão pela TV, no gabinete do filho Flávio Bolsonaro, no Senado. Manifestou-se por meio de sua conta no X e numa entrevista coletiva.
“Querem que eu passe o resto da minha vida na cadeia para nunca mais disputar uma eleição”, disse. “Isso é exatamente o que vimos acontecer na Venezuela, onde usaram a Justiça como arma para definir o resultado das eleições antes mesmo de o povo votar.
”
Também se tornaram réus mais sete pessoas, quatro com patentes
militares — três generais do Exército, um tenente-coronel e um
almirante da Marinha. São eles: Walter Braga Netto (ex-ministro da
Defesa e da Casa Civil), Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de
Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da
Defesa), Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), Alexandre
Ramagem (deputado que chefiou a Abin), Anderson Torres (exministro da Justiça) e Mauro Cid (ex-ajudante de ordens). Os sete
responderão pelos mesmos crimes.
A partir de agora, essa Turma do STF vai votar o que é chamado de “mérito”: houve ou não um golpe em curso no país naquela tarde de janeiro de 2023? Se sim, quem planejou e como ele ocorreria? Em condições institucionais normais, seria uma tarefa muito árdua para os cinco ministros que, desde a última terça-feira, parecem empenhados em comprovar o que a Polícia Federal e o Ministério Público não conseguiram: a materialidade, as provas do crime. A peça da Procuradoria-Geral da República, escorada num relatório da PF com quase 900 páginas, é repleta de lacunas e suposições, e termina numa ginástica jurídica sem precedentes na Suprema Corte.
Em suma, trata-se de um roteiro hollywoodiano que o brasileiro já percebeu que não cola: seja pelo agente secreto que perdeu o táxi, pelo militar com medo de tomar uma multa num Fiat Palio velho, seja ainda pela imagem do vendedor de algodão-doce no meio da multidão. Ou muito pior: a cabeleireira condenada que Alexandre de Moraes quer colocar na prisão por 14 anos pelo crime de pichar uma estátua com batom (leia artigo de J.R. Guzzo nesta edição). Segundo Moraes, tratava-se de uma turba muito violenta, e não de avós que carregavam Bíblias.
Do ponto de vista temporal, parece uma corrida contra o calendário eleitoral — embora Bolsonaro esteja inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o pleito de 2022 provou que ele é o maior puxador de votos do país. O processo do 8 de janeiro corre 14 vezes mais rápido do que a ação do Mensalão, que levou sete anos até chegar ao plenário — o julgamento teve 53 sessões, em 138 dias.
Uma pergunta é inevitável ante o noticiário inundado pelo nome de Bolsonaro nesta semana: onde entra o já ex-presidente naquela data no enredo fantástico do golpe? Segundo a PF e o Ministério Público, referendados pelo voto de Alexandre de Moraes, o ex-presidente era uma espécie de líder oculto da baderna, que terminaria com a queda de Lula da Silva — posteriormente envenenado junto com o vice, Geraldo Alckmin. Os investigadores disseram que o destino de Moraes seria mais drástico: sequestro ou enforcamento em praça pública. É evidente que, em nenhum momento, alguém de toga questionou se isso parece crível: um enforcamento de autoridades a céu aberto em pleno Ocidente, por exemplo, ou a tomada de poder de um território com 8,5 milhões de quilômetros quadrados sem um único tanque ou pólvora.
“A denúncia ressalta ainda que Jair Messias Bolsonaro tinha pleno conhecimento das ações da organização criminosa e destaca que, mesmo após a derrota, determinou que as Forças Armadas divulgassem nota para a manutenção das pessoas à frente dos quartéis (…) Se ele analisou a minuta do golpe e não quis, se analisou e quis, isso será no juízo de culpabilidade. Mas não há dúvida que ele tinha conhecimento da minuta do golpe. Chama-se como quiser: decretação de estado de sítio ou de defesa, cuja intervenção seria somente no TSE.” (Voto do ministro Alexandre de Moraes)
Flávio Dino, ex-militante do Partido Comunista do Brasil, tentou achar uma saída para o que Moraes não conseguiu: o crime de associação criminosa armada. O ministro comunista disse que, como consta a presença de militares na denúncia, e militares obviamente têm acesso a armas, então configura-se uma grande associação criminosa armada. Ele não lembrou que houve revista na Esplanada dos Ministérios no dia, e que os artefatos mais perigosos encontrados foram estilingues e bolas de gude. Ao acusar centenas de milhares de pessoas pelo porte de armas — sem individualização de conduta —, fez os atenuantes possíveis para as penas caírem por terra. Não é exagero afirmar que a ampla maioria naquela massa de pessoas jamais pegou numa arma na vida.
O julgamento da admissibilidade da denúncia teve momentos de nervosismo explícito. Moraes leu seu voto com as mãos trêmulas. Chegou a interromper a leitura, aliás, para mandar a Polícia Judiciária deter o advogado Sebastião Coelho, que defende Filipe Martins, exauxiliar de Bolsonaro, por desacato. O colega Zanin cometeu duas barbeiragens: chamou os acusados de réus, o que foi tratado como deslize pelos jornais, mas pode ser interpretado como antecipação de voto ou desejo enrustido, e, na quarta-feira, esqueceu de ler a ata da sessão anterior — levou um puxão de orelha de Cármen Lúcia.
Vários trechos do parecer de Moraes — que citou a ele mesmo como “o eminente relator” — foram contestados por profissionais do Direito. Um deles foi quando disse que a Constituição não prevê o duplo grau de jurisdição, ou seja, que todo condenado tem o direito à reanálise do seu caso por um tribunal independente, e pode recorrer a uma Corte superior — logo, o STF não é o fórum legal para esse tipo de julgamento. Quem escreveu isso foi o próprio Alexandre de Moraes, na página 124 do seu livro, intitulado Direito Constitucional. Ou seja, num mesmo dia, Moraes não só citou Moraes, como contestou Moraes.
Fabrício Rebelo - Durante a sessão sobre o recebimento da denúncia oferecida contra Jair Bolsonaro, o Relator do caso, Min. Alexandre de Moraes, registrou que a Constituição Federal "não assegura o direito ao duplo grau de jurisdição" (recursos). Há um livro de Direito Constitucional em que o Mostrar mais
Outro ponto controverso foi apresentar uma “prova-surpresa”: um vídeo de cinco minutos, com imagens do quebra-quebra, elaborado por sua assessoria. O material não constava nos autos. Dezenas de juristas afirmaram publicamente que a inclusão do vídeo, feita por um juiz, é absolutamente ilegal. É um recurso que, no limite, pode ser apresentado pelo Ministério Público (responsável pela acusação), se ficar claro que se trata de “fatos notórios e públicos”. Pior: o material exibido foi editado, com imagens escolhidas a dedo pelos assistentes de Moraes. “Nunca vi isso na minha vida”, disse o advogado constitucionalista André Marsiglia. O ministro, contudo, deu de ombros
André Marsiglia - O pior do vídeo apresentado por Moraes não é
ser prova surpresa, sem prévio informe às partes,
não é ser editado, não é ser motivo para anular
julgamento em qualquer país democrático do
mundo, mas ser uma prova supresa apresentada por
um juiz. Nunca vi isso em toda minha vida Mostrar
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6:33 PM · 26 de mar de 2025
Também sobram manifestações de juristas renomados sobre a recusa de Moraes em manter um julgamento dessa magnitude numa Turma de cinco ministros, e não no plenário completo. O ex-presidente do STF Marco Aurélio Mello, que passou 31 anos na Corte, chamou a atitude de “descalabro”.
O pedido — rejeitado pela maioria — para levar o julgamento ao plenário foi encampado por Luiz Fux. Apesar de vencido em suas ponderações, ele foi o único que apontou o exagero nas penas impostas aos réus, como os 14 anos de prisão para a cabeleireira Débora. “Vou fazer uma revisão dessa dosimetria, porque a dosimetria é inaugurada pelo legislador, a fixação da pena é do magistrado. E o magistrado o faz à luz da sua sensibilidade, do seu sentimento em relação a cada caso concreto”, disse. “Quero analisar o contexto em que essa senhora se encontrava. Nós julgamos sob violenta emoção após a tragédia do 8 de janeiro.”
Na quinta-feira, 27, alguns jornais trouxeram informações de bastidores sobre as manifestações de Fux. Juiz de carreira — passou no concurso em 1982 —, percorreu o caminho da magistratura: foi ministro do Superior Tribunal de Justiça e chegou ao STF em 2011, com a aposentadoria de Eros Grau. Fux tem conversado com juristas experientes, preocupados com o estrago na imagem da instituição por causa de Moraes e na jurisprudência que esse julgamento pode abrir para o futuro.
Os conselheiros recomendaram a revisão de dois pontos cruciais: a redução das penas, levando em conta atenuantes (e não agravantes sem sentido, como fez Moraes); e que Mauro Cid seja ouvido novamente, agora em juízo, com mais cautela — por isso, Fux pediu para estar presente, pessoalmente, no dia. Numa semana marcada pelo teatro do absurdo ocorrido no Supremo, as falas de Luiz Fux surgiram como uma luz no fim do túnel para o Estado de Direito.
“Acho que os juízes na sua vida têm sempre de refletir dos erros e dos acertos”, disse. Goste-se do seu estilo ou não, Fux é o único juiz da Corte.
Sílvio Navarro - Revista Oeste