A perseguição movida contra Bolsonaro evidencia que o verdadeiro problema do consórcio Lula-STF é a falta de provas capazes de sustentar a fantasia da derrubada da democracia
D emorou até demais a ofensiva que não surpreendeu ninguém. O ataque a Jair Bolsonaro, que deveria ser o derradeiro, poderia ter ocorrido em 14 de fevereiro, quando uma pesquisa do Datafolha revelou que mais de 40% dos entrevistados reprovam o governo Lula, enquanto apenas 24% continuam a aprová-lo — índice inferior ao registrado em dezembro de 2005, no auge do escândalo do Mensalão, quando o presidente alcançava 28% de “ótimo e bom”. Também poderia ter se desencadeado depois do jantar entre Lula e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que acabou espertamente adiado: o evento repercutiu muito mal na mídia e nas redes sociais e deixaria Lula ainda pior no retrato.
Mas só na terça-feira, 18, horas depois de o Instituto Paraná divulgar uma pesquisa avisando que Jair Bolsonaro venceria Lula numa eleição presidencial, o procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet, fez o que vinha ensaiando fazer há meses: denunciou o ex-presidente e mais 33 pessoas, acusando-as de tentativa de golpe de Estado e mais quatro crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Somadas, as eventuais condenações podem resultar em até 28 anos de prisão. A acusação chegou um dia antes do prometido, a tempo de virar manchete no Jornal Nacional.
Resumo da ópera: segundo a PGR, em 2021 Bolsonaro teria começado a arquitetar um plano para se manter no poder, colocado em prática depois de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarar Lula oficialmente eleito. O primeiro ato da “trama golpista” teria sido a quebradeira na Praça dos Três Poderes. A conspiração previa até o assassinato do presidente, do vice Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes, à época chefe do TSE. O orçamento da ruptura institucional seria de aproximadamente R$ 100 mil. Não se sabe como os recursos foram manejados, mas as investigações da PF falam em uma “sacola de vinho” com dinheiro dada a um militar, durante um jantar na casa do general Walter Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro nas eleições de 2022.
Castelo de cartas
A denúncia amparou-se num relatório da Polícia Federal enviado pelo STF à procuradoria. O documento se tornou público em novembro de 2024 — na mesma semana em que o dólar ultrapassou o patamar de R$ 6 pela primeira vez na história. No palavrório, a polícia solicitou o indiciamento de Bolsonaro e de outras 36 pessoas. O excesso de dubiedades enfraqueceu as conclusões da corporação. Nas mais de 800 páginas, há 204 expressões debilitadas pelo uso do condicional. A palavra “possibilidade”, por exemplo, aparece 47 vezes. “Teria” ou “teriam” somam 107. “Hipótese” ou “hipotética” (25) empatam com “supostamente”.
Para chegar ao texto encaminhado à PGR, a PF extraiu a grande maioria das informações contidas na delação de Cid, homologada por Moraes em 9 de setembro de 2023. Além do depoimento do tenentecoronel, a PF usou informações reunidas no inquérito aberto para investigar o 8 de janeiro. Segundo Gonet, a colaboração do militar, que só nesta quarta-feira, 19, se tornou pública, detalha o que seriam uma “trama golpista” e os seus participantes. Pouco depois de Cid renderse ao acordo, áudios publicados na revista Veja engrossaram a suspeita
“Os policiais federais queriam que eu falasse coisa que eu não sei, que não aconteceu”, revelou Cid. “Eles não aceitavam nada e discutiam que a minha versão não era a verdadeira, que não podia ter sido assim, que eu estava mentindo. Eles estão com a narrativa pronta. Não queriam saber a verdade. Queriam somente que eu confirmasse a narrativa deles.” Em março, numa nova audiência com um juiz auxiliar de Moraes, Cid retirou as acusações.
Em novembro, foi chamado pelo STF mais uma vez, para explicar por que omitira na delação o hipotético “plano de assassinato” de Moraes, Alckmin e Lula, que teria sido tramado na residência de Braga Netto. Ameaçado pelo ministro, que mencionou obscuros “efeitos” contra a família de Cid, caso o depoente não dissesse a verdade, o tenente-coronel mudou trechos relevantes da versão anterior. Cid dissera que o encontro na casa de Braga Netto, em novembro de 2022, pretendia apenas produzir registros fotográficos de Bolsonaro e seu vice feitos por militares. Frente a frente com Moraes, Cid preferiu afirmar que o ato visava a promover “caos social” suficiente para justificar a intervenção das Forças Armadas e a permanência de Bolsonaro no comando do país
Contradições também afetaram os chamados “recursos do golpe”. Antes, Cid afirmara que o pedido de dinheiro era feito em tom de brincadeira e nunca se concretizou. Confrontado com Moraes, alterou o relato: o dinheiro, desmentiu-se Cid, serviria para ações contra o próprio ministro inquisidor. Moraes e outras autoridades seriam presos e assassinados. A origem do dinheiro é outro monumento ao mistério. Cid contou que, ao firmarem o acordo, tentaram conseguir a quantia necessária com o PL. Diante da negativa, coube a Braga Netto conseguir o dinheiro com “o pessoal do agro”. Não forneceu nenhum nome.
Chama atenção a postura ameaçadora de Moraes. “Se as omissões e contradições não forem sanadas, nos termos da legislação vigente, isso poderá acarretar a decretação da prisão preventiva e a rescisão do acordo de colaboração premiada, com efeitos não só para o colaborador, mas também em relação ao seu pai, sua esposa e sua filha maior”, ameaçou o ministro, em alusão aos parentes de Cid envolvidos na suposta falsificação de carteirinhas de vacinação contra a covid-19. Moraes também avisou que aquela era a “última chance de o colaborador dizer a verdade sobre tudo”: “Quero que diga o que sabe, mais especificamente em relação a Bolsonaro, às lideranças militares citadas, general Braga Netto, general Heleno, general Paulo Sérgio, general Ramos e eventuais outros que ele tiver conhecimento”.
Terraplanismo do Judiciário Em reação, parlamentares lançaram um manifesto em defesa de Bolsonaro. “A denúncia é uma verdadeira peça de ficção, uma denúncia encomendada para gerar um resultado que todos já conhecem”, declarou o deputado Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara, ao mencionar o STF, que vai julgar a aceitação da acusação. “É denúncia baseada em delações e presunções. Ao longo do processo, o delator foi alterando e omitindo fatos, situação mais que suficiente para anular a delação. É sempre bom lembrar que Bolsonaro será julgado por aqueles que se vangloriam de ter derrotado o bolsonarismo.
” O jurista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, acrescentou que a peça da PGR é um “terraplanismo do Judiciário”.
“A PGR peca em não individualizar, nem especificar adequadamente a função e a conduta de cada um, pressupondo a liderança de Bolsonaro pelo fato, por exemplo, de estar à frente de reuniões”, observou. “Essa denúncia se limita a divulgar postagens, reuniões, frases ditas por Bolsonaro e lives”, constatou Samantha Meyer, pós-doutora em Direito Constitucional e integrante da Academia Paulista de Letras Jurídicas. “Todos esses elementos estão protegidos pela liberdade de expressão. Ter opinião não é crime. Por isso, não restou demonstrada relação direta de que tudo isso tenha a ver com o 8 de janeiro. As ‘minutas de golpe’ são apócrifas e, no dia do protesto, o ex-presidente nem no Brasil estava mais.”
O modus operandi do consórcio Lula-STF-imprensa para resolver os seus problemas políticos tem sido a manipulação dos textos legais. Nesta semana, alguns truques podem transformar-se em tiros pela culatra. Moraes já virou alvo de uma ação na Justiça dos Estados Unidos por violação à soberania americana (leia mais no artigo de Ana Paula Henkel). A ação é movida pelas empresas Trump Media, pertencente ao presidente Donald Trump, e Rumble, uma plataforma forçada a deixar o país em 22 de dezembro de 2023. A questão está estacionada num tribunal de Justiça federal sediado na Flórida.
Segundo os autores da ação judicial, Moraes violou a legislação americana ao ordenar ao Rumble que suspendesse o perfil do jornalista Allan dos Santos. Neste fevereiro, o jurista Pedro Vaca, que ocupa o cargo de relator para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visitou o Brasil para colher denúncias de abusos praticados pelo STF contra presos do 8 de janeiro e casos de desrespeito à liberdade de expressão.
Em vez de resolver as complicações em que se enredou, o regime em vigor no Brasil pode ver ampliado o acervo de problemas. O autoritarismo de Moraes, a arrogância abusiva da PF e da PGR, e a provável condenação de Bolsonaro pelo Supremo escancaram o que está por trás do grupo que manda no país. No momento, os poderosos parceiros apostam todas as fichas na prisão do mais popular dos líderes da oposição. Se não reunir provas que mantenham de pé a denúncia mambembe, a turma no governo pode se transformar na grande vítima do golpe do “golpe”.
Cristyan Costa, Revista Oeste