domingo, 23 de fevereiro de 2025

J.R. Guzzo - 'Qualquer democracia do mundo jogaria no lixo a denúncia de Gonet contra Bolsonaro'

 Peça da Procuradoria-Geral da República não apresenta provas contra os acusados


Paulo Gonet toma posse como procurador-geral da República -18.12.2025 | Foto: Leobark Rodrigues/Secom/MPF 

A denúncia criminal feita pela PGR contra o ex-presidente Bolsonaro, com pedidos de prisão que, um em cima do outro, chegam a 43 anos, permite mais de um tipo de abordagem. Que tal começar pela mais simples? Trata-se de responder à seguinte pergunta: você acredita, honestamente, que um tribunal de justiça da Alemanha ou da Suíça, por exemplo, ou de qualquer país civilizado, aceitaria a peça assinada pelo procurador Gonet, tal como ela está? Ou mandaria arquivar a denúncia no ato, por não apresentar nenhuma prova minimamente séria? 

O regime ora em vigor, como os aiatolás do Irã, criou uma religião oficial no Brasil, com um dogma supremo: você tem de acreditar que o governo anterior agiu para dar um golpe, ou quis agir, e só não deu porque não conseguiu. E as provas de que isso de fato ocorreu? É uma questão religiosa, também. Na Idade Média, como se sabe, os gatos gordos da Igreja mostravam um pedaço de metal enferrujado para as pessoas e garantiam que era um prego da cruz. Uma lasca de madeira era apresentada como fragmento da coroa de espinhos, e vidrinhos com tinta vermelha eram o sangue do próprio Cristo. Com o Golpe dos Estilingues é a mesma coisa.


Alexandre de Moraes, ministro do STF, e Paulo Gonet, Procurador-Geral da República, durante a solenidade comemorativa ao Dia do Soldado, no Quartel-General do Exército, em Brasília, DF (22/8/2024) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil


A Polícia Federal, há dois anos, diz qualquer negócio, mas qualquer negócio mesmo; a mídia reproduz, sem checar os fatos, exatamente o que lhe disseram; o que é a declaração de um policial vira, por milagre, prova com valor judicial para a PGR. É uma linha de montagem para a produção de material probatório de todos os tipos — e assim como o padre garantia que a toalha do altar era feita com o véu da Virgem Maria, a polícia e demais autoridades garantem que tudo o que estão falando é sério. É acusação? Então é verdade. 

O resultado é uma situação curiosa. Um cidadão com os circuitos mentais em rotação normal ouve há dois anos essas histórias e diz: “Mas nada disso é prova”. 

A resposta automática e indignada dos crentes é: “Há prova, sim, e em excesso. Olha aí tudo o que a Polícia Federal está dizendo. 

Não é prova? 

O que mais você quer”? Falam, então, dos depoimentos, das delações, dos vídeos, dos áudios, das  minutas do golpe, do Punhal Verde-Amarelo, da sacola de vinho, dos Kids Pretos. Mas de golpe, que é bom, nada. Nada deixa isso tudo tão claro como a joia da coroa da peça de acusação: a delação do coronel Cid. 

O sigilo em torno de seu interrogatório foi aberto — e ficou evidente, em áudio gravado, que Alexandre de Moraes ameaçou de prisão Cid, seu pai, sua mulher e sua filha maior, se ele não apresentasse os fatos que o ministro queria. Bastaria isso, em qualquer democracia do mundo, para a justiça jogar a denúncia da PGR no lixo.

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo

J.R. Guzzo - Revista Oeste