quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Flávio Gordon - O cinismo estrutural do regime PT-STF

 

tamaraty publicou nota em defesa do ministro Alexandre de Moraes, do STF. (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado


Trata-se de um padrão histórico: todo regime totalitário passa por uma fase que poderíamos chamar de cinismo estrutural, quando os membros da Nomenklatura começam a acreditar nas próprias mentiras – inicialmente concebidas para manipular a sociedade – e perdem contato com a realidade. Usualmente, essa é uma etapa que marca o começo do fim do regime, quando a elite do poder, cada vez mais isolada e reduzida a personalidades psicopatológicas, passa a mentir de modo quase automático, obsessiva e ostensivamente.

Um exemplo desse fenômeno pode ser encontrado nas fases derradeiras da ditadura de Nicolae Ceaușescu, na Romênia. No instante mesmo em que, graças ao colapso econômico invariavelmente causado pelo modelo comunista, a luz era racionada em todo o país, o regime tinha a desfaçatez de proclamar-se o parteiro de uma “era de luz”. Eis aí um tipo de cinismo que, longe de casual, é, como dissemos, estrutural – sobretudo nos regimes de inspiração marxista e neomarxista. Aí, o cinismo deixa de ser uma mera estratégia objetiva de propaganda e manipulação e passa a se incorporar à subjetividade do ditador, tornando-se parte inerente de sua persona.

As próprias circunstâncias de formulação da nota do Itamaraty já explicitam o cinismo da cobrança por respeito a decisões judiciais e à separação de poderes por parte daqueles que, provavelmente, mais as desrespeitam no mundo

Mutatis mutandis, é nessa fase que o regime ditatorial no Brasil, comandado pelo consórcio PT-STF, parece estar entrando. Por exemplo, o que foi a recente nota assinada pelo Itamaraty (mas escrita sabe-se lá por quem) em defesa de Alexandre de Moraes, se não uma clara demonstração de cinismo estrutural? Em resposta às críticas manifestas pelo Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental, órgão vinculado ao Departamento de Estado dos EUA, o Ministério de Relações Exteriores do Brasil escreveu o seguinte:


“O governo brasileiro rejeita, com veemência, qualquer tentativa de politizar decisões judiciais e reafirma a importância do respeito ao princípio republicano da independência dos poderes, garantido pela Constituição Federal de 1988.”


Sim, o leitor não leu errado. Os representantes do regime brasileiro, uma mixórdia nada republicana de Executivo e Judiciário, tiveram a cara-de-pau de acusar a politização de decisões judiciais e pedir respeito ao princípio republicano da independência dos poderes. Sim, quem clama por decisões judiciais não politizadas é justamente o regime no qual magistrados de tribunais superiores celebram o fato de terem cumprido uma “missão dada” e “derrotado o bolsonarismo”; o regime em que magistrados dão recadinhos cobrando lealdade ao presidente que admitem terem elegido, e participam de inauguração de obras; o regime em que o presidente se reúne secretamente com os magistrados, o procurador-geral da República e o diretor da Polícia Federal que operam para condenar e prender o seu principal adversário político; o regime em que o magistrado responsável pelas pretensas “decisões judiciais” voltadas unilateralmente contra a direita – pois combater a direita é a missão autodeclarada desse magistrado – confraterniza numa festinha sambante com o presidente da República recém-empossado; um regime em que os ministros da suprema corte não apenas não hesitam em fazer política partidária (que lhes é vedada por lei) como confessam despudoradamente a sua atuação política (como nos casos de Luís Roberto Barroso e, recentemente, Flávio Dino)... E os exemplos de politização à esquerda da justiça no Brasil poderiam se multiplicar às centenas.

Mas nem sequer a lembrança dessa promiscuidade institucional seria necessária, uma vez que as próprias circunstâncias de formulação da nota do Itamaraty já explicitam o cinismo da cobrança por respeito a decisões judiciais e à separação de poderes por parte daqueles que, provavelmente, mais as desrespeitam no mundo. Como informa matéria da CNN Brasil, ninguém menos que o próprio Alexandre de Moraes – objeto implícito das críticas do órgão governamental americano – foi consultado acerca do teor da nota de resposta do governo brasileiro. Ou seja, além das funções que o pretenso magistrado já ocupava aberrantemente, agora ele também conduz as relações diplomáticas do Brasil.

Como disse ao jornalista William Waack o ex-embaixador brasileiro Rubens Barbosa, a nota emitida pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil foi altamente incomum e fora do padrão do que se esperaria de um comunicado diplomático. “Na minha visão, quem está politizando o assunto é o governo brasileiro, e não os americanos”, opinou Barbosa. “E eu tenho quase certeza de que essa nota não foi redigida no Itamaraty, que jamais faria uma nota desse tipo (...) Então, houve pressão sobre o Itamaraty.”

Temos, portanto, uma nota cuja forma mesma já desmente o conteúdo. Uma nota que cobra a não politização da justiça e a independência republicana dos poderes, mas cuja própria confecção resulta de uma completa politização da justiça e de uma fusão nada republicana entre poderes. Eis aí, portanto, o suprassumo do cinismo estrutural característico de regimes totalitários em fase descendente.


FlávioGordon - Gazeta do Povo