O STF finge ignorar a diferença entre um golpe de Estado e uma procissão de vilarejo
Em 23 de agosto de 1902, quando ainda se chamava Ribeirãozinho, Taquaritinga viveu seu mais glorioso momento: o pontapé inicial na revolta que liquidaria a República pré-adolescência e entregaria a Dom Luiz de Orleans e Bragança o trono que Pedro II ocupou. Às 3 da madrugada, comandados por figurões municipais insatisfeitos com o desempenho do presidente Campos Salles, 200 homens armados aplaudiram a troca de regime, de hino e de bandeira, fora o resto. (Algumas testemunhas oculares juravam que, àquela altura, a tropa já passava de mil voluntários. Acho exagero: a população nem chegara a 5 mil.) O fato é que os insurretos invadiram a sede semideserta da delegacia de polícia, substituíram o doutor deposto por um político local previamente escolhido, tomaram de assalto a estação ferroviária e deram por concluída a primeira etapa da rebelião.
Pelo telégrafo expropriado da ferrovia agora a serviço da Coroa, os revolucionários enviaram a boa notícia a centenas de aliados distribuídos pelo território paulista e por outros Estados: Ribeirãozinho era monarquista de novo. Protegidos por meia dúzia de sentinelas, tanto comandantes quanto comandados atravessaram o fim da tarde, a noite, a madrugada e a manhã do dia 24 aguardando a aparição de mensagens igualmente alvissareiras. Nenhuma foi esperada com tanta ansiedade quanto a que seria expedida pelo comando central do movimento, baseado em São Paulo, para informar a hora exata do embarque para a capital, onde engrossariam a multidão que festejava a ressurreição do Brasil imperial.
O primeiro e último telegrama remetido pelo QG chegou no meio da tarde de 24 de fevereiro — e com novidades desoladoras. Além de Ribeirãozinho, só pegara em armas Espírito Santo do Pinhal, outra pequena comarca paulista. A revolta havia naufragado espetacularmente. Passada a ressaca, os revoltosos da velha Ribeirãozinho se deram por satisfeitos com a vitória solitária. Nenhum envolvido no levante foi preso, os governos estadual e federal fizeram de conta que nada de tão grave acontecera e a vida seguiu seu curso.
Em 2015, o samba-enredo da nossa escola homenageou a completa falta de juízo dos antepassados. Trecho: “Taquaritinga / amanheceu / muito invocada / e se rebelou: / pegou em armas / e resolveu / ser monarquia por um dia“. Nascido em 1949, as histórias que ouvi na infância e na pré-adolescência me ensinaram a demarcar fronteiras além das quais um projeto político ousado se transforma em alucinação. Perseguir uma miragem inatingível é sintoma de loucura.
Aos 14 anos, testemunhei o confronto de 1964. E vi com nitidez a verdade desconhecida ou subestimada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal: golpe de Estado é coisa séria. Arquitetá-lo é tarefa demorada, complexa, perigosa. Desvendá-lo exige equilíbrio, serenidade, lucidez. Não é coisa para cérebros severamente avariados.
Nem para portadores de estrabismo seletivo em altíssimo grau, informa a cachoeira de vogais e consoantes despejadas no Supremo Tribunal Federal por Paulo Gonet, procurador-geral da República. Cinco parágrafos bastam para alertar que o afilhado de Gilmar Mendes foi o melhor da classe em juridiquês. Um substantivo pedante, um adjetivo barroco, um verbo de polainas, uma citação em alemão, adornados pelo olhar superior de quem já foi escalado para presidir o Juízo Final e pronto: estará mais que provado que em 8 de janeiro houve uma tentativa de golpe de Estado, e golpe bem mais assustador que um congresso de degoladores do Estado Islâmico. Além da tentativa de destruição do Estado Democrático de Direito com batons inflamáveis.
Como convém a um procurador-geral parecer sempre sóbrio, Gonet raramente sorri. Como o dono de um cargo de tais dimensões também não deve ter dúvidas, só em ocasiões especiais ele recorre à sabedoria do decano e mentor Gilmar Mendes. Pelo que se vê na denúncia, Gonet não perde tempo com dicionários ao topar com incertezas ortográficas. Juristas do primeiro time sabem desde o jardim da infância que ninguém, nem mesmo Bolsonaro, pode incomodar o STF com qualquer ultrage. A palavra não existe. Em contrapartida, um ultraje de grosso calibre pode ser a justificativa para mais uma prisão seguida de multa. Tudo somado, é ultrajante para os pagadores de impostos, que bancam também todas as contas dos altos servidores federais, constatar que, para Gonet, o certo é escrever “ultrage“ (com “g” de “Gilmar”) em vez de “ultraje” (com “j” de “Justiça” ou “jerico”). Escreva isso dez vezes naquelas páginas em branco da agenda, Excelência. De nada.
As acusações, cretinices, platitudes, denúncias, invencionices desfiadas no palavrório de Gonet, endossadas sem ressalvas por Alexandre de Moraes, não merecem respostas, explicações nem provas. Merecem perguntas. Muitas perguntas. Seguem-se dez exemplos:
1. Alguém já sabe se Flávio Dino manteve a tropa estacionada no Ministério da Justiça no 8 de janeiro por estar ocupado com mais um devastador assalto à geladeira?
2. Se escapassem ilesos de Brasília, os golpistas atacariam no dia seguinte o Sambódromo da Sapucaí ou a esquina da São João com a Ipiranga?
3. Por que matar o convertido profissional Geraldo Alckmin em vez de convidá-lo a disputar o cargo de síndico com o apoio de Bolsonaro?
4. Algum golpista foi designado para descobrir o que achavam do golpe os comandantes das principais guarnições militares?
5. Se os golpistas vencessem, cassariam os mandatos dos governadores
que apoiam o governo Lula e rebaixariam a vereadores os prefeitos do PT?
6. Quem chefiava os kids pretos? A expressão não é racista?
7. O procurador não tem ninguém no PCC a procurar?
8. O procurador não tem nada mais importante a fazer?
9. Gonet e Moraes acreditam que Lula ficou multimilionário porque trabalha muito desde a infância?
10. Se Lula morresse envenenado, quem seria condenado pelos golpistas a casar-se com Janja?
Fiquemos em dez. As perguntas a fazer são milhares.
Augusto Nunes - Revista Oeste