Os novos rumos da organização esquerdista
De quinta-feira 29 até domingo 2, em Brasília, líderes da esquerda latino-americana vão se encontrar na 26ª reunião do Foro de São Paulo (FSP). Para falar sobre o tema, Oeste entrevistou o jornalista, analista político e palestrante Paulo Henrique Araújo, estudioso da organização que tem o objetivo de instalar o socialismo na América Latina.
PHVox, como também é conhecido, possui três livros publicados: EUA e o Partido das Sombras, As Bases Revolucionárias da Política Moderna e O Mínimo Sobre o Foro de São Paulo. Do FSP, sob o atual governo petista, a população brasileira pode esperar “um avanço feroz contra os inimigos políticos, a criação de mecanismos que impossibilitem ao máximo a organização de oposição política e a criminalização abstrata de ideias e de posições políticas”.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Durante as eleições, muito se falou que o Foro de São Paulo não passava de um “discurso”. Agora estamos testemunhando a 26ª reunião do Foro, em Brasília. Afinal, o “discurso” caiu?
O Foro de São Paulo é o principal meio de ação da esquerda latino-americana em mais de 30 anos. O próprio presidente Lula declarou, no aniversário de 15 anos do FSP, em 2005, que o Foro havia sido determinante para que a esquerda chegasse ao poder em todo o continente. Para além do discurso, temos o caso de 2008. Na época, após a morte de Raul Reyes (número 2 das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), Hugo Chávez declarou que o conhecera junto de Lula em uma reunião do FSP, em El Salvador, no ano de 1995. Ali o venezuelano passou a ser apadrinhado por Fidel Castro. Na ocasião, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia já eram conhecidas pelo envolvimento com o tráfico internacional de drogas e com sequestros em níveis quase industriais. Reyes estava longe de ser apenas um agente de “discursos”.
Como a imprensa, de maneira geral, trata do assunto?
Ao longo destes trinta anos, existe um roteiro para o tratamento do FSP, que defino na seguinte ordem: passo 1: O Foro de São Paulo não existe, isto é teoria da conspiração; passo 2: O Foro de São Paulo não é nada do que dizem, é somente uma reunião de velhinhos saudosistas das ideias socialistas da época da Guerra Fria; passo 3: O Foro de São Paulo existe, mas ele não é uma ameaça à democracia, é somente um fórum de debates de ideias da esquerda; e passo 4: O grande problema do Foro de São Paulo é que ele existe, mas não com o poder que lhe é conferido. É tão-somente utilizado como uma ferramenta de discurso político eleitoral, tornando este grupo em uma ferramenta a ser explorada pela direita em todo o continente.
O que é o FSP, e como a organização atua no cenário geopolítico da América Latina?
O FSP é, em suma, uma organização de diversos partidos revolucionários de esquerda da América Latina. Note, é importante diferenciarmos o que a maioria das pessoas entende por partido político daquilo que os revolucionários chamam de partido. Os partidos democráticos, em geral, atuam na formulação de pautas e regras de existência baseadas em leis nacionais e no respeito ao “Estado Democrático de Direito”. Respeitam a alternância de poder e entendem as diferenças políticas como parte do jogo, que deve passar por escrutínio da população por meio de eleições, em que escolhem seus representantes em diversas esferas do poder público para reger os rumos da nação. Os partidos revolucionários que compõem o FSP, mais necessariamente os comunistas e socialistas, enxergam a política como uma extensão da guerra revolucionária. Aqui, cada um faz parte de uma unidade supranacional que deve cooperar mutuamente para a tomada do poder. Em geral, seus adversários não são tão-somente derrotados eleitoralmente, mas precisam ser eliminados do debate público. Se os meios forem propícios, devem ser expurgados da existência. Exemplos não faltam: Cuba, Nicarágua, Venezuela, Bolívia e Argentina. Além de tentativas como as do Brasil.
Nicolás Maduro, o ditador da Venezuela, assim como outros ditadores comunistas da América Latina, marcarão presença em Brasília?
A visita de Maduro ao Brasil em maio passado gerou uma comoção muito grande na população e na mídia, mas não creio que o suficiente para impedir uma nova visita do ditador da Venezuela ao Brasil. O que provavelmente deve colocar ressalvas na participação presencial de Maduro será a fragilidade nas relações com outros países fora do eixo do FSP, como Paraguai e Uruguai, que precisam aderir a pautas impositivas do Foro para a integração do continente sob sua tutela, como a reativação da União de Nações Sul-Americanas [Unasul], cuja finalidade é criar uma espécie de União Europeia no continente. Na reunião passada, no dia seguinte à chegada de Maduro ao Brasil, a sua presença na reunião gerou protestos e contestação de chefes de Estado contrários à participação das ditaduras, sendo o principal exemplo o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou.
O que o PT espera com a 26ª reunião do Foro?
No documento prévio liberado pela cúpula do FSP, são apresentados 99 pontos que abrangem os ideais ideológicos socialistas e os distribuem nas mais diversas pautas que atingem a vida de qualquer cidadão brasileiro, como, por exemplo: relações de trabalho entre empresas e empregados, pautas voltadas ao ambientalismo, agenda identitária, reforma agrária, reforma jurídica e regulação dos meios de comunicações, além das relações internacionais (fora do continente) que envolvem a Rússia e a China como peças centrais neste processo. Diversas pautas em processo de implantação pelo PT no Brasil estão como objetivos a serem alcançados por todos os membros do FSP e expressos neste documento. É seguro afirmar que é esperado um intercâmbio de métodos, meios e articulação em como implantar estas políticas em bloco em todo o continente.
Recentemente, o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, tomou decisões explicitamente antidemocráticas. Ele estará em Brasília com o Lula?
Creio que a presença de Ortega pessoalmente ou de sua vice e esposa, Rosario Murillo, seja improvável, pelos mesmos motivos que tendem a barrar a presença de Nicolás Maduro e dos mencionados anteriormente. Todavia, é certa a presença de representantes da Frente Sandinista em Brasília, bem como de representantes do PSUV, que é o partido de Maduro na Venezuela.
O Brasil corre o risco de se tornar um Narcoestado, com o crescimento do PCC e de outras 40 facções?
O principal papel do Brasil no continente é funcionar como zona de escoamento para o tráfico de drogas e armas. Isto ocorre em razão do tamanho de suas fronteiras, pouco vigiadas, e de sua posição geográfica para o escoamento de drogas para a Ásia, para a África e para a Europa, através dos principais portos marítimos do país. A cocaína é o principal entorpecente traficado através do Brasil. Porém, a droga praticamente não é fabricada em terras brasileiras. Toda ela é oriunda de países ou controlados por membros do FSP, ou por guerrilhas revolucionárias que se sustentam através da produção e do tráfico. Um exemplo é o Cartel dos Sóis, organização criminosa que opera dentro das Forças Armadas Venezuelanas com a anuência e a participação dos políticos do país. Este cartel hoje é responsável pelo escoamento de algo em torno de 25% de toda a cocaína produzida no mundo.
A Colômbia, agora governada por Gustavo Petro, pode sucumbir às Farc novamente?
Politicamente podemos afirmar que já sucumbiu, mas não às Farc nominalmente. Sucumbiu ao modelo de guerrilhas produtoras e traficantes de drogas. O acordo de paz com as Farc gerou outros grupos dissidentes, que passaram a assumir a face criminosa do grupo, enquanto o “slogan” Farc foi transformado em partido político. Estes grupos ganharam refúgio no território da Venezuela e operam de lá. Atualmente, Gustavo Petro negocia acordo similar com o Exército de Libertação Nacional da Colômbia, contando com a intermediação da Venezuela e de Cuba. Trata-se da “paz total”, mesmo modelo adotado anteriormente com as Farc. Ao nível de exemplo, nas últimas semanas Gustavo Petro começou a trabalhar na criação de um fundo de financiamento para esta guerrilha, para que, com estes repasses, ela deixe de produzir e traficar drogas, além de deixar de praticar sequestro de pessoas.
Existe alguma organização internacional com o real potencial de fazer frente ao Foro de São Paulo?
Atualmente, não. Existem iniciativas nascentes, que tentam de alguma forma criar uma oposição ou criar um método espelhado. Contudo, esbarram em diversas dificuldades, sendo a principal delas a falta de estrutura e o investimento no trabalho intelectual, na formação de material literário e na organização de militância política nos diversos países. Neste espectro, temos atualmente um grupo ainda nascente chamado Foro de Madri, que possui a meta de contrapor o FSP. Ao nível de governos, existe o Grupo de Lima, formado por membros de governos eleitos que atuam para barrar o avanço de pautas revolucionárias. Atualmente, o grupo está esvaziado, pois a tomada do poder pelo Foro de São Paulo em diversos Estados-membros fez a organização deixar de funcionar.
Quem financia o Foro de São Paulo?
O FSP é financiado de diversas formas, mas não com um financiador central do grupo. O projeto sempre trabalha com investimentos dos partidos que fazem parte de suas fileiras. No caso do Brasil, é presumível haver o direcionamento de verbas provenientes do Fundo Eleitoral através da fundação Maurício Grabois, ligada ao PCdoB, e da fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores. Ambas aparecem com destaque no site do FSP.
Como países satélites do comunismo, como a Rússia e a China, veem a realização do 26º encontro do Foro em Brasília?
Ambas possuem papel central na retomada do FSP nos últimos seis anos. Este é um dos pontos centrais do meu livro O Mínimo Sobre o Foro de São Paulo, em que apresento o papel fundamental de ambos na sustentação do projeto revolucionário no continente. Nesta reunião de 2023, a China ocupa um lugar de destaque, conforme exposto no documento de intenções do evento. Nele a China é apresentada como o novo eixo econômico para o continente, não por motivos meramente financeiros, mas expressamente ideológicos: “A cooperação entre América Latina e China não é nova, e a tendência é que ela se expanda no futuro. Vale ressaltar que esses vínculos, antes limitados em grande parte ao intercâmbio tecnológico e comercial, agora deram um salto qualitativo na arena política”. Além deste ponto, o FSP coloca-se como um bastião para defender os interesses chineses na nova guerra fria que estamos presenciando: “É preciso estar alerta para uma nova ameaça, uma nova guerra fria pela tecnologia, que tem como objetivo bloquear o setor tecnológico da China e condenar nossos países à dependência tecnológica das hegemonias da Europa e dos Estados Unidos, por meio de “alianças digitais”. O verdadeiro objetivo é impedir o avanço da Iniciativa do Cinturão e Rota e consolidar um bloco de países para uma nova guerra fria, agora digital, contra a China“.
Durante o governo Bolsonaro, a atuação do Foro ficou suspensa?
De forma alguma. Neste período, o FSP esteve extremamente ativo e atuante em diversos países, como Equador, Chile, Peru, Bolívia, Argentina e Brasil. Em 2019, em meio ao caos instalado no continente, Diosdado Cabello (figura central do chavismo), em uma declaração no 1º Congresso Internacional de “Las Comunias”, em 19 de outubro, fez declarações sobre o papel que o FSP estava desempenhando em todos os acontecimentos na região: “O que está acontecendo no Peru, no Chile, no Equador, na Argentina e em Honduras é apenas a brisa. Um furacão bolivariano está chegando. Não estamos isolados no mundo, pelo contrário, a Venezuela está se tornando cada dia mais consolidada”. No mesmo evento, Maduro deu a seguinte declaração: “O Foro de São Paulo, posso lhes dizer, o Foro de São Paulo está cumprindo os planos, os planos vão como decidimos, está indo perfeitamente o plano. Vocês me entendem? O Foro de São Paulo é o plano que está fluindo, vitorioso”. Estas falas foram em referência às decisões tomadas na 25ª reunião do FSP, em Caracas, na Venezuela.
O que esperar do Foro no atual governo?
O que já estamos presenciando: um avanço feroz contra os inimigos políticos, a criação de mecanismos que impossibilitem ao máximo a organização de oposição política e a criminalização abstrata de ideias e de posições políticas. Também podemos esperar o avanço de projetos que favoreçam um avanço mascarado da reforma agrária, demarcações de terrenas indígenas e diversas pautas ligadas às agendas identitárias. Este processo já está em curso em âmbito legislativo e jurídico. No campo do Executivo e nas relações internacionais, podemos esperar um aumento substancial das relações internacionais com ditaduras e regimes ditatoriais. Além disso, deve ocorrer uma tentativa de integrar o Brasil em um projeto regional cujo objetivo é diminuir cada vez mais a soberania nacional, elevando decisões para um parlamento continental. Também pode haver a criação de uma Suprema Corte Continental, e a Unasul é o fórum destinado para este fim. No campo econômico, será implantada cada vez mais uma sino-dependência, utilizando a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos [Celac] como a cúpula de negociações. A ideia é dar cada vez mais preferência a negociações com regimes como o Irã e a Rússia, sempre intermediados pelo Partido Comunista Chinês.
Vitor Marcolin, Revista Oeste