A pretexto de proteger direitos, o ministro Alexandre de Moraes atropela competências constitucionais e define de cima para baixo políticas públicas sobre pessoas em situação de rua
No Estado Democrático
de Direito, não existe poder
ilimitado. Todos os Poderes
estão sujeitos a regras de
competência. No entanto,
é cada vez mais difícil que
se respeitem esses limites.
Parece sempre haver um
bom motivo para justificar
a exceção.
Recentemente, o ministro
Alexandre de Moraes, do
Supremo Tribunal Federal
(STF), determinou que
União, Estados e
municípios adotem uma
série de medidas em
relação à população em
situação de rua.
O diagnóstico que levou
à decisão é razoável:
depois da pandemia, por
vários fatores, cresceu
muito o número de
pessoas em situação de
rua nas cidades
brasileiras, e o poder público,
em suas diferentes esferas,
tem sido incapaz – e mesmo
omisso – no cuidado dessas
pessoas e no respeito a
seus direitos.
Também não há como
discordar de Alexandre de
Moraes quando diz que
“a atenção à população
em situação de rua deve
ser realizada a partir da
observância de três eixos:
evitar a entrada nas ruas;
garantir direitos enquanto
o indivíduo está em
situação de rua; e
promover condições para
a saída das ruas”. O
problema surge quando o
ministro entende que ele
sozinho tem poderes
para fixar obrigações
concretas sobre o tema
para a União, os Estados
e os municípios.
Por exemplo, Alexandre
de Moraes determinou
que todos os Estados e
municípios cumpram
imediatamente as
diretrizes do Decreto
Federal 7.053/2009, que
instituiu a Política
Nacional para a
População em Situação
de Rua. Com isso, a
liminar do magistrado
transformou uma política
de livre adesão dos entes
federativos em uma
obrigação, distorcendo a
concepção do próprio
decreto da União.
Para justificar a medida,
o ministro do STF alegou
que, até 2020, apenas 5
Estados e 15 municípios
haviam aderido a essa
política do governo federal.
Ora, a baixa adesão dos
entes federativos, com
resistência mesmo
daqueles cujos
governadores eram então
alinhados politicamente
ao governo federal, diz
muito sobre o decreto. E
não é, de forma nenhuma,
fundamento para tornar a
tal política obrigatória.
O princípio federativo não
é um adereço que se pode
ignorar quando convém.
Entre outras ordens, o
ministro Alexandre de
Moraes fixou prazo de
120 dias para que a
União elabore um plano
de ação e monitoramento
para a implementação da
Política Nacional para a
População em Situação
de Rua. À primeira vista,
parece uma medida boa
e razoável, com o
Judiciário obrigando o
Executivo federal a agir.
No entanto, ela distorce
o funcionamento do
regime democrático.
Em vez de uma lei
aprovada pelos
representantes eleitos,
é a decisão de um único
juiz que fixa os parâmetros
de atuação do Executivo.
A bem da verdade, esse
tipo de medida judicial é
ingênuo e disfuncional.
A canetada de um ministro
do STF não resolve nem
reduz o drama da
população em situação de
rua, que tem inúmeras
particularidades. Não é
por capricho que a
Constituição encarregou
a administração
municipal de cuidar das
questões locais. Quando
o Judiciário avança sobre
a esfera alheia, o
resultado é a
irresponsabilidade política
do poder público e da
própria população, que se
vê autorizada a ficar i
ndiferente ao problema.
Já existe um juiz em
Brasília determinando o
que se deve fazer.
Na decisão, o ministro
Alexandre de Moraes
menciona “a violação
maciça de direitos
humanos, a indicar um
potencial estado de
coisas inconstitucional”.
É preciso cuidado com
o tema. De outra forma,
a Constituição de 1988
deixará de ser cidadã
para se tornar paternalista.
A rigor, todos os dramas
sociais são inconstitucionais,
uma vez que contradizem
valores e direitos previstos
na Constituição. Mas isso
não autoriza que o
Judiciário substitua, menos
ainda por decisão liminar,
o Executivo e o Legislativo.
O descuido com os limites
constitucionais pode ser
visto num ponto
aparentemente pequeno,
mas significativo, da
decisão. Juntamente com
o PSOL e a Rede, o
Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto
(MTST) é um dos autores
da Ação de
Descumprimento de
Preceito Constitucional.
Apesar de o MTST não ter
legitimidade para ajuizar
essa ação, Alexandre de
Moraes não se manifestou
sobre o assunto.
Estadão