As declarações públicas de Lula, ladrão condenado a mais de 20 anos de cadeia, são marcadas por elevado tom de agressividade - Foto: Sebastião Moreira / EFE / Arquivo
Na coluna da semana passada, analisei a fala do presidente da República sobre “extirpar” os “animais selvagens”, como os assim coletivamente chamados “bolsonaristas” têm sido descritos com espantosa frequência. Passados alguns dias de sua publicação, e o mandatário orgulhosamente comunista do Brasil reincidiu no discurso de ódio. Pregando para sindicalistas em São Bernardo do Campo, conclamou suas milícias à violência política contra os “malucos” bolsonaristas nas ruas (se ainda restar algum fora do cárcere).
“Vocês têm de estar preparados, porque nós derrotamos o Bolsonaro, mas não derrotamos o bolsonarismo ainda” – urrou de ódio o camarada Inácio, dando a senha para o expurgo, e incentivando que a eliminação de bolsonaristas possa ser aventada abertamente, inclusive sob forma pretensamente artística. Quem eventualmente julgara exagerada a minha qualificação dessa retórica como genocida talvez agora passe a reconsiderar.
Foi Raphael Lemkin, jurista polonês de ascendência judia, quem cunhou o termo “genocídio” no ano de 1944. Lemkim combinou a palavra grega genos-, cujo significado é “raça” ou “tribo”, com o derivativo latino -cídio, que significa “matar”. E definiu genocídio como “um plano coordenado, composto por diferentes ações, cujo objetivo é a destruição das fundações essenciais da vida de grupos nacionais, visando à aniquilação desses mesmos grupos”. Muito influenciada por Lemkin, a Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio, de 1948, limitou as vítimas do genocídio a grupos “nacionais, étnicos, raciais ou religiosos”.
De modo similar, o Oxford English Dictionary definiu genocídio como “o extermínio deliberado e sistemático de uma nacionalidade ou grupo étnico”. Mas, uma vez que grande parte dos genocídios (notadamente os perpetrados por regimes de orientação marxista) não teve como vítimas essenciais grupos nacionais, raciais ou étnicos, mas opositores e dissidentes políticos, na coluna de hoje utilizarei preferencialmente o termo assassinato em massa para me referir ao fenômeno assim compreendido.
Por outro lado, o conceito formulado na Convenção das Nações Unidas apresenta uma vantagem. Limitar a ideia de assassinato em massa ou genocídio à efetiva aniquilação total de um determinado grupo criaria uma definição demasiado estrita. Por essa régua conceitual, com efeito, talvez nenhum fenômeno pudesse ser propriamente descrito como genocídio, sequer mesmo o Holocausto. Daí que tanto os organizadores da Convenção quanto a maioria dos estudiosos do tema tenham optado por enfatizar a intenção ou tentativa dos perpetradores, ainda quando não plenamente bem-sucedida.
Portanto, de modo a, simultaneamente, evitar as dificuldades do termo “genocídio” e aproveitar o que de interessante persiste no conceito, utilizo assassinato em massa, definido simplesmente como a intenção ou tentativa de matar um número expressivo de civis desarmados, pertencentes a variados modos de identidade coletiva, seja ou não de caráter nacional, étnico ou religioso. Ademais, o conceito não se limita a métodos diretos de execução (tal como a guilhotina, as câmaras de gás e os paredões de fuzilamento), incluindo as mortes causadas pela forme politicamente provocada (como no Holodomor), maus tratos e condições degradantes no cárcere, trabalhos forçados, exposição a doenças e restrições dos meios de acesso a necessidades vitais.
São raras as vezes em que o assassinato em massa é uma empreitada popular. Ao contrário, o ímpeto para o morticínio geralmente se origina no seio de pequenos grupos organizados, detentores de poder, e na atuação de lideranças individuais
Mesmo com toda a perseguição política já praticada pelo regime vigente, e a retórica genocida do camarada Inácio, obviamente continua soando inconcebível, à primeira vista, a ideia de assassinato em massa no contexto brasileiro. Nossa tendência natural é imaginar que nossas cultura e história não comportam desfechos tão drásticos. Além disso, sobretudo graças ao exemplo paradigmático do Holocausto, costumamos pensar que a perpetração de um assassinato em massa requer o apoio expressivo de uma vasta parcela da sociedade, que, por nutrir um ódio visceral pelo grupo-vítima, acaba chancelando e até mesmo participando ativamente (como foi em Ruanda) do morticínio.
Mas, sobre o primeiro motivo de incredulidade, recordo apenas que, no contexto alemão, a solução final também permaneceu por muito tempo inconcebível aos judeus, mesmo quando os nazistas já haviam tomado o poder e dado início à perseguição generalizada.
A perplexidade diante da escalada da violência atingiu mesmo as mais prescientes dentre as vítimas, a exemplo do filólogo judeu Victor Klemperer, que anotou em seu diário no dia 22 de março de 1933: “Ninguém teme por suas vidas ainda”. Também a Klemperer, a barbárie nazista parecera alheia à cultura alemã: “Tudo o que eu considerava antigermânico, a brutalidade, a injustiça, a hipocrisia, a histeria em massa ao ponto da intoxicação, tudo isso hoje floresce aqui” – escreveu dias depois.
Já sobre a segunda causa de incredulidade diante da mera hipótese de um desfecho genocida, remeto o leitor ao interessante estudo do cientista político americano Benjamin A. Valentino, publicado no livro Final Solutions: Mass Killing and Genocide in the 20th Century. Contrariando a opinião dominante entre muitos estudiosos do tema, que tendem a diminuir a importância da liderança política, e a buscar as causas dos assassinatos em massa nas estruturas sociais, formas de governo ou na psicologia coletiva das sociedades em que ocorreram, Valentino acredita que os fatores sociais têm um papel muito menor do que usualmente se acredita.
Segundo ele, são raras as vezes em que o assassinato em massa consiste numa empreitada popular e socialmente abrangente. Ao contrário, o ímpeto para o morticínio geralmente se origina no seio de pequenos grupos organizados, detentores de poder político e militar, e sobretudo na atuação de lideranças individuais. Seria difícil imaginar o Grande Terror sem Stalin, o Holocausto sem Hitler, a Revolução Cultural sem Mao Tse-tung.
“À luz das minhas descobertas, proponho que as causas do assassinato em massa podem ser mais bem compreendidas quando o fenômeno é estudado a partir do que chamo de perspectiva estratégica” – escreve Valentino. “A perspectiva estratégica sugere que o assassinato em massa deve ser visto como uma ferramenta política, uma estratégia brutal concebida para atingir os objetivos ideológicos e políticos mais importantes dos líderes, e coibir o que percebem como as ameaças mais perigosas (...) Contrariamente à percepção usual, os perpetradores do assassinato em massa raramente veem o ato como um fim em si mesmo. A violência contra os grupos-vítima raramente tem a intenção de exterminar fisicamente populações inteiras. Mais comum é que o propósito seja forçar as vítimas a se submeter a formas de vida radicalmente novas”.
Como se depreende de sua análise do fenômeno no século 20, é preciso apenas um nível mínimo de apoio social para a perpetração do assassinato em massa, um apoio extremamente fácil de se obter, sobretudo quando o grupo político perpetrador tomou conta dos aparelhos repressivos do Estado. Com efeito, líderes políticos dispõem de métodos poderosos para recrutar os indivíduos necessários para a condução do processo, e garantir a cumplicidade, ou ao menos a passividade, do restante da sociedade. De acordo com o autor:
“O apoio ativo ou a participação da maioria do público não são, em geral, necessários para a ocorrência do assassinato em massa. A violência concreta na maioria dos episódios de assassinato em massa é realizada por grupos relativamente pequenos, usualmente militares, paramilitares e organizações políticas. O restante da sociedade tipicamente permanece passiva ou indiferente ao destino das vítimas. De fato, antes que de apoio positivo da sociedade como um todo, um assassinato em massa frequentemente parece requerer pouco mais do que poderíamos chamar de ‘apoio negativo’ – a incapacidade das vítimas de escapar ou se defender, a ausência de oposição organizada doméstica ou internacional aos perpetradores, e a falta de disposição da população em assumir riscos em prol dos outros (...) Apenas governos democráticos costumam precisar de apoio amplo e proativo para suas políticas. No entanto, a grande maioria dos assassinatos em massa não ocorreu em democracias. Líderes que disponham do apoio político e militar necessário para assumir o controle do Estado usualmente possuem o apoio suficiente para a condução do assassinato em massa. Em países não democráticos, esse nível mínimo de apoio pode ser bastante acessível.”
Ocorre, por vezes, que a maioria da população de um país endosse o extermínio do grupo considerado socialmente pernicioso. Mas é muito mais frequente que o grosso da população não aprove o plano genocida dos ocupantes do poder, que, todavia, segue em frente ainda assim.
Como sugere Valentino, a simpatia do público em geral é irrelevante para os processos de assassinato em massa. Por outro lado, a indiferença – aquela “indiferença progressiva dos conterrâneos” descrita pelo historiador do nazismo Ulrich Herbert – costuma ser muito mais decisiva. A escritora russa Nadezhda Mandelstam, cujo marido pereceu no gulag stalinista, descreveu a atitude de muitos de seus contemporâneos durante o Grande Expurgo:
“Nós todos optamos pela saída fácil de manter o silêncio na esperança de que seriam os nossos vizinhos, e não nós, os próximos a serem mortos”. É o mesmo espírito dominante na sociedade brasileira atual, que, com raras exceções, optou pelo silêncio na esperança de que apenas os “bolsonaristas” – descritos como inimigos do Estado, da democracia, da civilidade, da paz e do amor – continuem sendo perseguidos e definhem no cárcere.
Flávio Gordon, Gazeta do Povo