O corregedor nacional de Justiça, ministro Luís Felipe Salomão, endossou e depois vetou o retorno do quinquênio para os juízes federais.| Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ.
Além de empenhar-se em fazer caminhar a agenda “progressista” por meio de resoluções que atropelam os demais poderes – inclusive o Poder Judiciário –, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) também exercem com certo gosto uma outra prática: a de, sob o pretexto do “controle da atuação administrativa e financeira”, implantar e defender até for possível uma série de penduricalhos para juízes (no caso do CNJ), procuradores e promotores (no caso do CNMP). Um julgamento que será encerrado assim que o Supremo Tribunal Federal retornar de seu recesso é bastante ilustrativo dessa prática.
Em 2006, o CNMP criou três benefícios, chamados “quinto”, “décimo” e “opção”, por meio dos quais os membros do Ministério Público que tivessem exercido alguma função de direção, chefia ou assessoramento continuariam recebendo os adicionais mesmo que já não ocupassem aqueles cargos. Além disso, os integrantes do MP que tivessem se aposentado no último nível da carreira fariam jus a um adicional de 20%. A única restrição imposta pelo CNMP era a de que a aposentadoria ou a elegibilidade para os três benefícios precisaria ter ocorrido antes de dezembro de 1998, quando houve uma minirreforma administrativa e o Congresso aprovou mudanças na previdência dos servidores.
Juízes e membros do MP têm o direito de pleitear remunerações condizentes com a importância de seu trabalho, mas com transparência, dentro da lei e seguindo os princípios da administração pública, incluindo o da moralidade. Os penduricalhos violam tudo isso
Imediatamente, a Advocacia-Geral da União do primeiro governo Lula foi à Justiça para derrubar o penduricalho. A ação, no entanto, levou inacreditáveis 17 anos para ser julgada, e o plenário virtual já registra maioria pela inconstitucionalidade dos benefícios. O relator, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou em seu curto voto que “o artigo 39, §4.º da Constituição Federal veda enfaticamente o acréscimo de qualquer espécie remuneratória ou de vantagens pessoais decorrentes do exercício regular do cargo”, para invalidar o “quinto”, o “décimo” e a “opção”; no caso do adicional de aposentadoria, Barroso afirmou que “o artigo 40, § 2º, com a redação conferida pela EC n.º 20/1998, estabeleceu que os proventos de aposentadoria, por ocasião de sua concessão, não podem exceder a remuneração do respectivo servidor no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria”.
As regras constitucionais são bastante cristalinas a esse respeito: o citado parágrafo 4.º do artigo 39 fala explicitamente em “subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”. O texto é tão inequívoco que há de se perguntar como o CNMP foi capaz de atropelá-lo tão acintosamente, passados já oito anos desde a emenda constitucional de 1998 que inseriu este trecho na Carta Magna, e como o Supremo levou tanto tempo para declarar a inconstitucionalidade de algo que era tão flagrantemente ilegal.
É preciso sempre recordar que os únicos adicionais constitucionalmente permitidos são os de natureza indenizatória, como o ressarcimento por determinados gastos. Este foi o centro do longo debate sobre o auxílio-moradia dos juízes (e que o MP também pretendeu adotar), pois pleiteava-se o seu pagamento como valor fixo a todos os magistrados, o que caracterizaria verba remuneratória. Só em 2018, após uma vergonhosa negociata entre STF, Congresso e Planalto que passou pela aprovação e sanção de um reajuste aos ministros do Supremo, com efeito-cascata para toda a magistratura, o ministro Luiz Fux derrubou suas liminares que garantiam auxílio-moradia amplo, geral e irrestrito; com isso, o CNJ regulamentou o benefício como deveria: ressarcimento, mediante comprovação de despesa com hotel ou aluguel, para juízes que tivessem de trabalhar em comarcas onde não residiam.
Se é verdade que o CNJ acabou fazendo o certo em 2018, embora com muito atraso e só depois que as demandas corporativistas foram contempladas de outra maneira, o conselho continue tentando descobrir até onde pode ir. Em novembro de 2022, o Conselho da Justiça Federal (CJF) aprovara a volta do quinquênio, uma gratificação por tempo de serviço, para a magistratura federal – e, como se não bastasse, decidiu que ele deveria ser pago retroativamente, cobrindo o período entre 2006 (quando o penduricalho foi extinto) e 2022. A presidente do CJF e do Superior Tribunal de Justiça, Maria Thereza de Assis Moura, que havia sido voto vencido, recorreu à Corregedoria Nacional de Justiça, vinculada ao CNJ, e em dezembro o corregedor Luís Felipe Salomão reconheceu a competência do CJF para restabelecer o benefício, ainda que ele contrariasse o artigo 39 da Constituição. A repercussão negativa, no entanto, fez o próprio Salomão recuar e suspender o pagamento, em abril deste ano.
O Judiciário e o Ministério Público existem para servir ao cidadão, e não para servir-se dele (e dos impostos com que ele sustenta as instituições). Se é verdade que juízes, promotores e procuradores merecem remunerações condizentes com a importância de seu trabalho e têm o direito de pleiteá-las, também é verdade que isso deve ser buscado com transparência, dentro da lei e seguindo os princípios que regem a administração pública, incluindo o da moralidade. Os penduricalhos violam tudo isso, e são ainda mais acintosos quando instituídos por decisão ou pressão de órgãos que deveriam zelar por uma boa administração e pelo uso responsável dos recursos que Justiça e MP têm à disposição.
Gazeta do Povo