sexta-feira, 29 de julho de 2022

'Os quatro Moraes', escreve Augusto Nunes

 

Foto: Montagem Revista Oeste/Agência Brasil


Sob a mesma fachada convivem a versão escrita, a versão falada, o professor que ensina o certo e o ministro que faz tudo errado 


Já se registrou nesta coluna a existência de duas versões de Alexandre de Moraes: a escrita e a falada. A primeira se manifesta na penca de livros que assinou, vários deles de leitura obrigatória em dezenas de cursos de Direito. Os textos tratam o idioma com gentileza, embora não dispensem enxurradas de latinórios e pedantismos em juridiquês castiço. A segunda versão não sobreviveria a uma prova oral de língua portuguesa do Enem. Quando fala de improviso, Moraes estaciona em reticências, tropeça em vírgulas errantes, escava fossos entre sujeito e predicado, junta palavras que não conversam entre si e produz sopas de letras intragáveis.

Como atestou a sabatina no Senado que aprovou por 19 votos a 7 sua indicação para a vaga no Supremo Tribunal Federal aberta pela morte de Teori Zavascki, a versão falada derrapa em desempenhos bisonhos mesmo quando lê textos redigidos pela versão escrita. Quase 11 horas de perguntas e respostas confirmaram que o sabatinado nunca chega a algum lugar. Ele só chega em. Também ignora a diferença entre onde e aonde, e nem desconfia que os dois advérbios se referem a algum ponto geográfico, nunca a um espaço de tempo. Estou falando da semana aonde me encontrei com o governador, disse mais de uma vez à ilustre plateia. E o falatório foi frequentemente truncado por apostos que transformam parágrafos num cortejo de vogais e consoantes que não faz sentido e parece nunca chegar ao fim. 

Depois da posse no Egrégio Plenário, tomaram forma o professor que ensina a coisa certa e o ministro que faz tudo errado

O descompasso entre a versão falada e a versão escrita se desdobraria em outra e mais perturbadora disfunção esquizofrênica: depois da posse no Egrégio Plenário, tomaram forma o professor que ensina a coisa certa e o ministro que faz tudo errado. A tese que o tornou doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo, por exemplo, afirma que não pode ser indicado para a Corte Suprema o ocupante de um cargo de confiança do presidente da República em exercício, “para que se evite demonstração de gratidão política”. Ao aceitar o convite de Michel Temer para substituir Teori Zavascki, ou Moraes não lembrou que era ministro da Justiça ou esqueceu a tese defendida quase 20 anos antes. 

Em 21 de fevereiro de 2017, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o sabatinado jurou combater a praga do “ativismo judicial” — essa insolente mania que têm os ministros de intrometer-se em assuntos que não lhes dizem respeito. Baseado em argumentos expostos em livros que assinou, Moraes se dispôs a acabar com esse coquetel de onisciência, onipresença e onipotência. “Não são poucos os que apontam enorme perigo à democracia e à vontade popular na utilização exagerada do ativismo judicial”, constatou. “Um juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte, que tentaram interpretá-las, e as duradouras tradições da nossa cultura política.” 

 

O Moraes que louvara a amistosa convivência com o Legislativo pariu o flagrante perpétuo e abortou a imunidade parlamentar para encarcerar o deputado federal Daniel Silveira

É o que Moraes não para de fazer desde 14 de março de 2019, quando o então presidente Dias Toffoli promoveu o impetuoso parceiro a relator do inquérito inventado para investigar a disseminação de fake news e ameaças endereçadas a integrantes do Timão da Toga. “O juiz pode incorrer num perigoso grau de subjetivismo ao interpretar a Constituição impondo seu próprio ponto de vista sobre os demais Poderes”, dissera durante o sarau com senadores o Moraes que já não existia — se é que existiu um dia. O candidato ao Supremo que pregava um convívio harmonioso com o Executivo foi o ministro que proibiu Jair Bolsonaro de nomear Alexandre Ramagem para a direção-geral da Polícia Federal — cargo cujo preenchimento é atribuição exclusiva do presidente da República. O Moraes que louvara a amistosa convivência com o Legislativo pariu o flagrante perpétuo e abortou a imunidade parlamentar para encarcerar o deputado federal Daniel Silveira.

“É preciso adotar um prazo máximo para prisões preventivas”, sustentou na sabatina. Manteve Daniel na cadeia por cinco meses. E, ao fim do julgamento no STF, celebrou com um sorriso vitorioso a condenação do deputado a quase nove anos de prisão. Frustrado com a graça constitucional concedida por Bolsonaro ao perseguido predileto do carcereiro togado, mandou às favas o parecer expedido num vídeo divulgado em 2018. Nele, Moraes reafirma que a concessão do indulto — seja individual ou coletivo, seja graça constitucional — é atribuição privativa do presidente da República, “goste-se ou não”. Alheio à ressalva, continua aplicando multas escorchantes a um representante do povo transformado em preso político por um ministro decidido a revogar o preceito constitucional: nenhum deputado ou senador pode ser punido por quaisquer opiniões, palavras ou votos. 

 

Até incorporar-se ao grupo de superjuízes, havia dois Moraes. Agora são quatro — o mesmo número de pontos de exclamação hasteados depois da última palavra do manifesto concebido por gente que enxerga soldados da democracia em torturadores da liberdade de expressão. O texto indigente parece ditado pela versão falada de Moraes, que não pode ficar fora da festa preparada para a leitura oficial do palavrório. Não são citados nomes de candidatos ao Planalto. Mas fica evidente que os signatários veem em Lula a sumidade enviada pela Divina Providência para livrar o Brasil de Jair Bolsonaro. 

O ponto de exclamação é a bengala do idioma, feita para avisar aos distraídos que as vogais e consoantes que o precedem devem ser pronunciadas aos gritos. Os autores do manifesto — todos ex-alunos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, como Moraes — usaram um na entrada e quatro na saída. Que tal usar um desses sinaizinhos para chacoalhar a cabeça de Celso de Mello, escalado para a leitura inaugural do palavrório mambembe? Em 2012, durante o julgamento do Mensalão, o ainda ministro recitou centenas de vezes que os poderosos patifes envolvidos naquela ladroagem não tinham um programa de governo. Tinham um projeto criminoso de poder. Com a bengalada, o Pavão de Tatuí talvez consiga lembrar que o chefe do bando era Lula, que agora pretende devolver à cena do crime.

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