sexta-feira, 29 de julho de 2022

'A nova receita da Ceagesp'. Após a bandalheira da era Lula-Dilma, estatal registra lucro pela primeira vez em cinco anos', por Paula Leal e Edilson Salgueiro

 

Foto: Alf Ribeiro/Shutterstock


Sob nova direção, à frente pessoas sérias


“Se o coronel sair, volta a máfia”, diz Claudio Belarmino. O comerciante de 69 anos herdou do pai um espaço na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), onde vende frutas há 45 anos. Para ele, a nomeação de Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araujo como diretor-presidente da Ceagesp moralizou o entreposto. “A Ceagesp estava abandonada, a corrupção era grande, a prostituição e o tráfico de drogas rolavam soltos aqui”, diz Belarmino, sobre as gestões anteriores. “Não que tenha acabado de vez, mas diminuiu bastante.”

O coronel Mello Araujo foi indicado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, para assumir a presidência da Ceagesp em outubro de 2020. O abacaxi era grande. A empresa pública federal, vinculada ao Ministério da Economia, é a maior central de abastecimento da América Latina e uma das maiores do mundo. O caixa da estatal estava no vermelho e registrou prejuízo nos últimos quatro anos. Os permissionários — como são chamados os locatários dos boxes de vendas de produtos — e os frequentadores da Ceagesp se queixavam da prostituição, do comércio de drogas e do jogo do bicho. Esses negócios criminosos disputavam o mercado com a venda de frutas, legumes, verduras, flores, plantas e pescado. Mello Araujo também enfrentou esquemas bem azeitados durante anos na companhia estatal: as cobranças irregulares de taxas para operadores de carrinhos, desfalques no caixa do estacionamento e cobranças de propina. “Ser presidente talvez seja um dos maiores desafios de toda a minha carreira”, disse o ex-comandante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) assim que assumiu o cargo. 

Não é para menos. Os números da Ceagesp são superlativos: mais de 3 milhões de toneladas de alimentos, flores e pescados comercializados ao ano, quase R$ 9 bilhões em volume financeiro e uma área total de cerca de 638 mil metros quadrados, por onde circulam diariamente 50 mil pessoas. Além disso, são 12 mil veículos que transitam pelas vias, cerca de 4 mil carregadores, mais de 2 mil permissionários e aproximadamente 400 ambulantes. Isso sem contar outras 12 unidades espalhadas pelo interior paulista, que movimentam R$ 2,5 bilhões em volume financeiro, e 13 unidades para armazenagem.

Quem trabalha no Entreposto Terminal São Paulo (ETSP), o maior deles, praticamente não precisa sair de lá para nada. São 88 salas comerciais, de barbearias, cabeleireiros e dentistas a lojas de acessórios para celulares e agências de viagens. O complexo inclui três restaurantes, sete lanchonetes, 44 quiosques de alimentação, três agências bancárias e um posto de combustível. Até mesmo os moradores da Vila Leopoldina, bairro localizado na zona oeste de São Paulo, onde fica a estatal federal, aproveitam para usar os serviços de banco e outras facilidades durante a semana. Eles também frequentam os varejões abertos ao público aos fins de semana, quando os consumidores podem comprar frutas, legumes e verduras, assim como ocorre em feiras livres, comuns em bairros paulistanos. Frequentada por quem gosta de comida, a Ceagesp também é famosa por seus festivais gastronômicos — o carro-chefe é a sopa de cebola, servida com outros sabores em um bufê de sopas durante o inverno. Se o clima esquenta, os caldos são substituídos por pratos de pescado, frutos do mar e massas.

 

A farra da propina e das taxas ilegais

Criada em maio de 1969, a Ceagesp surgiu da fusão de duas empresas mantidas pelo governo do Estado de São Paulo: o Centro Estadual de Abastecimento (Ceasa) e a Companhia de Armazéns Gerais do Estado de São Paulo (Cagesp). Por oito anos, foi administrada pelo governo de São Paulo. Em 1977, passou para a gestão federal. Com cerca de 650 funcionários só no ETSP, entre servidores públicos de carreira, cargos comissionados e estagiários, a companhia abastece a mesa de 1,5 mil municípios brasileiros e de 22 países. 

Como é comum no universo das estatais, a Ceagesp sucumbiu à corrupção e se viu envolta em uma série de denúncias de cobrança de propina, taxas ilegais e falta de transparência na prestação de contas. Antes da chegada do coronel Mello Araujo, o espaço era gerenciado pelo deputado federal Fausto Pinato (PP-SP). Entre os indicados constava até o pai do parlamentar, o advogado Edilberto Donizeti Pinato, condenado por homicídio. Ele ocupava o cargo de coordenador de Governança Cooperativa e Ouvidoria, com salário de R$ 19,5 mil por mês. O presidente da companhia era Johnni Hunter Nogueira, assessor parlamentar do deputado estadual Carlão Pignatari (PSDB-SP), da mesma região de Pinato.

Diante das graves denúncias, o governo federal decidiu intervir no comando da Ceagesp. Depois da nomeação de dois presidentes interinos, a chegada do coronel Mello Araujo encerrou o ciclo da gestão de Pinato à frente da estatal. Uma das primeiras medidas do novo presidente foi acabar com a taxa irregular de R$ 60 mensais imposta aos carregadores para guardar os carrinhosOeste conversou com alguns desses trabalhadores autônomos. Sob a condição de ter os nomes mantidos em sigilo, eles confirmaram o fim da cobrança. “Se atrasasse três meses o pagamento, não dava para tirar o carrinho, a gente não podia trabalhar”, disse um carregador, que desde 2001 trabalha na Ceagesp. “A gente pagava para o Zé, do sindicato”, afirmou. “Agora não precisa mais. Esse dinheiro que sobra dá para um lanche e ajuda a pagar a condução.” A cobrança irregular da taxa rendia quase R$ 240 mil por mês — valor que não aparecia para o caixa da Ceagesp. “Uma parte do dinheiro ficava com José Pinheiro [ex-presidente do Sindicato dos Carregadores Autônomos (Sindicar), o ‘Zé’, a que o carregador se referiu ao conversar com a reportagem] e outra parcela era repassada para as antigas administrações da Ceagesp”, explicou o coronel Mello Araujo. “José Pinheiro tinha acordo com fiscais corruptos, que perseguiam os proprietários dos carrinhos.” Da mesma forma, as mulheres que vendem o cafezinho eram reféns do esquema, lembrou o diretor-presidente da Ceagesp. “As cafezeiras também tinham de pagar para deixar o carrinho delas em algum local. Acabamos com isso.”

Depósito de carrinhos da Ceagesp | Foto: Paula Leal/ Revista Oeste

O Ministério Público também investiga suspeitas de cobrança de propina e de uso ilegal do espaço público. Outra ação rastreia a transferência do uso de espaços dentro da Ceagesp sem licitação. “Registramos quase 600 casos de vendas ilegais de espaços”, disse o coronel. Por ser uma empresa federal, todos os tipos de permissão exigem trâmites burocráticos e até licitação. “Aproximadamente R$ 35 milhões foram movimentados com essa história. Isso foi para o bolso de alguém, não para o da Ceagesp. Hoje, há um processo licitatório claro.”

A administração do estacionamento era outra encrenca. A empresa que prestava serviço ao ETSP cobrava R$ 270 mensais dos clientes e gerava R$ 130 mil de lucro para a Ceagesp. “O estacionamento é da Ceagesp, e as administrações antigas contrataram uma empresa para administrá-lo”, disse o coronel. “Recebemos a informação de que a empresa contratada pertencia a um deputado.” Em agosto do ano passado, os estacionamentos passaram a ser administrados por uma nova companhia, que venceu a disputa por meio de pregão eletrônico. O valor da mensalidade baixou para R$ 250, e os entrepostos passaram a lucrar R$ 600 mil por mês. 

Como toda estatal, a Ceagesp não foge à regra de loteamento de cargos para apadrinhados políticos. A empresa dispõe de 56 cargos em comissão, que podem ser preenchidos por indicação política. “Antigamente, a Ceagesp era um cabide de empregos. Vários deputados tinham cargos de gerência aqui dentro”, disse o coronel. “Há muito interesse na Ceagesp. O giro financeiro ultrapassa os R$ 12,5 bilhões anuais. Para quem quer roubar, é um lugar farto.” Hoje, os 12 gerentes dos Ceasas do Estado de São Paulo são concursados. “O coronel Mello Araujo cortou mais da metade dos cargos comissionados”, disse Aderlete Maçaira, diretora-executiva do Sindicato dos Permissionários em Centrais de Abastecimento de Alimentos do Estado de São Paulo (Sincaesp). “Alguns cargos de confiança realmente são necessários, mas o número era exagerado.” O sindicato para o qual Aderlete trabalha está presente desde a fundação da Ceagesp. Ela afirma que sempre houve distribuição de cargos na estatal. “Na época do PT, um dos sobrinhos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chamado Edson Inácio Marin da Silva, foi gerente do entreposto”,  lembrou a diretora do sindicato. “Os petistas instalaram um pedágio dentro da Ceagesp, passaram a cobrar dinheiro dos trabalhadores.”

Ao desmontar os conluios e a partidarização no comando da estatal, o coronel começou a sofrer ameaças. Ele contou que um traficante de drogas, preso em Osasco, na Grande São Paulo, confessou que planejava matá-lo. “Isso está gravado”, garantiu Mello Araujo. Hoje, ele usa um colete à prova de bala e tem um esquema de segurança. Apesar das intimidações, o diretor-presidente da estatal não deixa de percorrer regularmente os espaços da Ceagesp. Formado em Direito e em educação física, Mello Araujo costuma incentivar os funcionários à prática da atividade física. Ao reunir um grupo de trabalho, ele mesmo lidera uma sequência de exercícios físicos de ginástica laboral, repetida pelos colaboradores.    

Lucro histórico, despesas contidas

Pela primeira vez em cinco anos, a Ceagesp registrou lucro — o resultado de 2021 ficou positivo em R$ 27 milhões. No ano de 2017, por exemplo, o prejuízo chegou a R$ 17,4 milhões. A redução de despesas gerais e administrativas é o principal fator de crescimento da Ceagesp. Em 2021, esses números atingiram R$ 40 milhões — uma queda de R$ 16 milhões, em comparação com os R$ 56 milhões registrados em 2020.

Privatizar ou não, eis a questão

O êxito na mudança de rumos reacendeu o debate sobre a privatização da Ceagesp. Em 2020, o então governador de São Paulo, João Doria (PSDB) tentou um acordo com o governo federal para mudar a estatal de endereço, às margens do Rodoanel Mário Covas, e passar sua administração para a iniciativa privada. Não houve acordo, mas não faltam interessados na ideia. 

Enquanto órgãos federais estudavam a possível mudança, Bolsonaro visitou a Ceagesp. Entusiasmado com o que viu, diante de milhares de permissionários, prometeu que a empresa não será privatizada durante seu governo. “Nenhum rato vai sucatear isso aqui, para depois ‘privatizar’ e beneficiar seus amigos”, ressaltou o chefe do Executivo.

Apesar de a atual administração ter colocado a Ceagesp nos trilhos, não há como garantir que a estatal não volte às mãos de políticos corruptos. O resultado das eleições deste ano determinará o destino de Mello Araujo na Ceagesp, porque cabe ao presidente da República indicar seu comandante. Caso Lula volte ao Palácio do Planalto, por exemplo, haverá uma drástica alteração nos rumos da empresa.

O economista e professor Ubiratan Jorge Iorio, colunista de Oeste, argumenta que a privatização é o melhor caminho para a Ceagesp. “Apesar dos bons resultados, porque a gestão é correta e honesta, nada impede que, no futuro, outro governo assuma o controle da estatal e coloque um ladrão como diretor-presidente”, observou. “Privatizar é bom, porque evita essas práticas tão comuns no país.”

O economista Luiz Carlos Barnabé, vice-presidente da Ordem dos Economistas do Brasil, segue na mesma linha. Ele diz que a privatização da Ceagesp poderia gerar para o governo federal uma receita maior que a obtida pela empresa pública. “Quando uma estatal dá prejuízo, o governo perde duas vezes: deixa de arrecadar e ainda põe dinheiro para socorrer a empresa”, explicou. “Se fosse privatizada, conseguiria obter receitas por meio dos tributos.”

Ao ser questionado sobre eventual privatização da Ceagesp, Mello Araujo diz que essa questão não lhe diz respeito. “Cabe ao presidente Jair Bolsonaro decidir”, resume. “Estamos apenas cumprindo uma missão.”

Instalada dentro da Ceagesp, a capelinha abriga a imagem da Virgem Maria, doada pelo prefeito de Aparecida, Luiz Carlos Siqueira | Foto: Edilson Salgueiro/Revista Oeste

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