sábado, 30 de julho de 2022

'O Judiciário brasileiro está cada vez mais distante da Justiça', afirma economista Marina Helena Santos

No Brasil, até o passado é incerto

A colocação da Justiça brasileira no quesito 'imparcialidade' do sistema de justiça criminal quase perde para a Venezuela
A colocação da Justiça brasileira no quesito 'imparcialidade' do sistema de justiça criminal quase perde para a Venezuela | Foto: Canva


Há uma frase atribuída ao ex-ministro Pedro Malan que diz que no Brasil até o passado é incerto. Toda vez que ouço essa análise sobre o nosso país, logo me vem à cabeça a figura simbólica do nosso Judiciário. No Brasil, não há como prever para onde caminha esse poder. Aliás, aqui, juiz decide muito, ganha demais, tem funcionários muito bem pagos, mas é um caos, elitista e concentrador de renda.

Os números são bem gritantes. Em 2020, a Justiça brasileira gastou mais de R$ 100 bilhões, segundo o levantamento mais recente do Conselho Nacional de Justiça (1,3% do PIB). Se quisermos fazer uma analogia quantitativa em relação a gastos com contas públicas, podemos lembrar que o governo federal aportou no ano passado algo em torno de R$ 60 bilhões para subsidiar o auxílio emergencial. A cifra ainda fica bem abaixo dos gastos que tivemos no Judiciário para sustentar um conglomerado de cerca de 433 mil funcionários, entre os quais cerca de 20 mil juízes. Se a gente quiser comparar com outros países, significa que o Brasil desembolsa o equivalente a três vezes mais do que a Alemanha proporcionalmente para manter o seu sistema Judiciário (e estamos falando da Justiça mais cara da Europa). Comparando com a Inglaterra, o Brasil gasta 10 vezes mais. Se isso não é uma farra, eu não sei mais o que é.

Recentemente, tivemos um pouco a noção para onde escoa esses R$ 100 bilhões que saem do meu, do seu, do nosso suado dinheiro. Os jornais estamparam nas manchetes que, no início deste ano, pelo menos 353 juízes, desembargadores ou ministros dos tribunais superiores receberam mais de R$ 100 mil de remuneração em ao menos um dos meses do ano. Um desses magistrados recebeu, de uma única vez, R$ 733 mil; outro, R$ 547 mil; e um terceiro, R$ 432 mil; os demais 350 receberam valores entre R$ 100 mil e R$ 280 mil. Eles engordam seus contracheques com ao menos 32 tipos de auxílios, gratificações, indenizações, verbas, ajudas de custo — uma longa lista de benefícios enquadrados facilmente como regalias.

Um projeto de lei em tramitação no Congresso busca restringir a criação desse tipo de penduricalho, que gera os supersalários no funcionalismo público. Aprovada em julho do ano passado na Câmara, a proposta limitou o pagamento de verbas indenizatórias no Judiciário. O texto, contudo, enfrenta um lobby forte e segue há um ano travado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Isso tudo mostra o quanto o Judiciário se transformou numa verdadeira caixa preta, inacessível para a ampla maioria das pessoas. Ele converteu-se em uma grande estrutura geradora de privilégios para poucos, com uma reduzida preocupação social, nenhuma participação democrática, transparência ou controle da sociedade.

Pelo preço que paga, o brasileiro deveria estar tendo uma das melhores, mais eficazes e mais confiáveis Justiças do mundo. Mas, na prática, o que vemos é o extremo oposto disso. Desde 2016, o Brasil vem caindo gradativamente no ranking que mede a efetividade do Estado de Direito em todo o mundo. É o que mostra o ranking do World Justice Project (WJP), organização internacional de sociedade civil, que acompanha esse indicador.

O levantamento “Rule of Law Index” tem como finalidade medir a prática do processo legal em 139 países, incluindo o Brasil. Entre os parâmetros utilizados na pesquisa estão: a duração do processo, a efetividade das investigações, a imparcialidade do sistema, a capacidade de prevenção criminal, a ausência de corrupção e o respeito ao devido processo legal. De acordo com o mapeamento, a Justiça criminal brasileira é uma das piores do mundo, ocupando a 112º posição mundial. O resultado também assusta com relação à efetividade e duração dos processos. Dos 139 países avaliados, o Brasil está na posição 133.

Outro dado chocante é a colocação brasileira no quesito “imparcialidade” do sistema de justiça criminal, em penúltimo lugar, atrás apenas da Venezuela.  O país também aparece na 78ª colocação em eficiência, eficácia e ausência de corrupção dos mecanismos alternativos de resolução de conflitos da justiça civil. Sobre a qualidade das investigações, o Brasil alcança uma colocação igualmente insatisfatória, no 117º lugar do ranking.

Nosso sistema também decepciona no critério imparcialidade e ausência de atrasos injustificados, na 114º posição. Infelizmente, embora os dados sejam alarmantes, eles não surpreendem ninguém. Onerosa, morosa, tendenciosa e muitas vezes, injusta, a Justiça brasileira parece estar mais preocupada em ocupar um protagonismo político do que garantir a preservação dos direitos em sua forma legal. Enquanto assistimos magistrados atuarem como legisladores e assuntos banais chegarem a última instância do Judiciário, o número de processos não para de crescer. Em 2021 eram mais de 77 milhões em tramitação.

Diante de um sistema demasiadamente lento e burocrático e de uma forte cultura de litigiosidade, fica nítida a falta celeridade dos processos. Essa desnecessária intervenção estatal em todo tipo de conflito, desencoraja os meios alternativos de resolução, como a mediação e a conciliação, que poderiam desafogar o sistema. Somado a esses fatores, nossa Justiça é guiada por uma Constituição obsoleta, extensa, ambígua, corporativista e distante da realidade do país.

Dos três Poderes que estruturam o ordenamento institucional brasileiro, o Judiciário é o único que não possui nenhuma abertura a participação de qualquer agente da comunidade, não tendo de prestar contas a ninguém, afora a seus próprios pares. É curioso pensar que em pleno século XXI tenhamos no Brasil uma estrutura com tamanha abrangência na sociedade e que seja tão pouco transparente como o nosso Judiciário. É justamente esta ausência de transparência que permite que muitos descalabros com dinheiro público sejam cometidos sem que provoque uma reação popular maior.

A quantidade de leis também contribui sensivelmente para a insegurança jurídica no país. Temos um cipoal legislativo de normas legais, regulamentares e complementares, que tornam quase impossível para os operadores do Direito manterem-se atualizados. Só para a gente ter uma ideia, nos primeiros 19 anos da Constituição brasileira foram editadas 3,6 milhões de normas, o que resulta em 21 normas federais por dia, sem levar em conta as estaduais e municipais, a demonstrar que o princípio da eficiência por parte da Administração Pública foi totalmente relegado.

Para piorar isso tudo, ainda temos a questão dos entendimentos divergentes das Cortes que só contribuem para acirrar a insegurança jurídica. A decisão de um juiz no Brasil é uma loteria. Não se sabe o que vai sair dali. Temos, por exemplo, decisões divergentes entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça em determinadas matérias que podem gerar dívidas bilionárias para as empresas. Vou citar um caso recente que vai ser julgado na nossa Corte máxima até o final desse mês. Em 2014, o STJ decidiu que as empresas não iriam pagar ao INSS sobre o adicional de um terço de férias dos funcionários. Em 2020, o STF fez as empresas voltarem a pagar, mas agora há uma questão de ordem que está para ser votada no STF que discute se essa cota patronal deverá ser paga retroativamente em relação a todo o período em que ficou sem ser recolhida. É o claro exemplo de que, no Brasil, até o passado é incerto.

Leia também: “Um tribunal que joga para Lula”, artigo de J.R. Guzzo publicado na Edição 122 da Revista Oeste


*Marina Helena Santos é formada em Economia pela Universidade de Brasília, com mestrado na mesma universidade. Possui mais de 14 anos de experiência como economista no mercado financeiro em instituições como Itaú Asset, Banco Bradesco, Quest Investimentos, Mauá Capital e Bozano Investimentos. Foi diretora de Desestatização do Ministério da Economia em 2019 e também CEO do Instituto Millenium. É fundadora do Movimento Brasil Sem Privilégios.

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