sexta-feira, 29 de julho de 2022

Mello Araújo: 'A Ceagesp era um caso de polícia'

 

Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araujo, diretor-presidente Ceagesp | Foto: Arquivo pessoal


Segundo o comandante da estatal, a empresa era palco de corrupção, prostituição e tráfico de drogas


“Ali está meu colete à prova de bala”, disse Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araujo, diretor-presidente da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), em entrevista à Revista Oeste. “Se os criminosos quiserem me assassinar, que entrem na fila.”

A declaração tem um contexto: desde outubro de 2020, quando foi indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para administrar o maior centro de distribuição da América Latina, Mello Araujo se tornou alvo dos corruptos e dos bandidos. O motivo? O fim da pilhagem na Ceagesp.

A estatal era palco de corrupção, prostituição e tráfico de drogas. Indicações políticas eram a regra, desfalques financeiros tornaram-se constantes. Não mais. Um choque de gestão tirou a Ceagesp da lama. Pela primeira vez em cinco anos, a empresa registrou lucro — R$ 27 milhões. Esse resultado deixa para trás os prejuízos registrados em 2020 (R$ 2,6 milhões), 2019 (R$ 10,6 milhões), 2018 (R$ 9 milhões) e 2017 (R$ 17,4 milhões).

O coronel Mello Araujo, diretor-presidente da Ceagesp | Foto: Reprodução/Mídias sociais

Na entrevista, o coronel da reserva explicou os principais motivos para a retomada da Ceagesp. A seguir, os principais trechos.

O senhor diz que a Ceagesp era um caso de polícia. Por quê?

Porque era um antro de corrupção. Os contratos eram superfaturados, havia venda de espaços que pertenciam à própria Ceagesp. Registramos quase 600 casos de vendas ilegais de espaços. Aproximadamente R$ 35 milhões foram movimentados com essa história. Isso foi para o bolso de alguém, não para o da Ceagesp. Hoje, há um processo licitatório claro. Os permissionários [como são chamados os locatários dos boxes de vendas de produtos] pagam um aluguel mensal e trabalham de maneira tranquila. Houve um caso de uma senhora que precisou dar R$ 100 mil para continuar trabalhando na Ceagesp. Esse dinheiro seria usado para pagar a faculdade da filha. Ameaçaram multá-la e até expulsá-la da Ceagesp. Chegamos a ver uma metralhadora e uma calibre .12 dentro da estatal. O tráfico de drogas era exposto. Mas conseguimos melhorar essa questão. Aqui, ninguém aponta uma arma para a sua cabeça. É a cidade mais segura do país.

O que a atual administração fez para desarticular a máfia dos carrinhos?

Os carregadores guardam os carrinhos em um galpão de 8 mil metros quadrados. Esse terreno pertence à Ceagesp. No entanto, José Pinheiro, ex-presidente do Sindicato dos Carregadores Autônomos (Sindicar), cobrava uma mensalidade de R$ 60 dos proprietários dos carrinhos. Eles apenas poderiam guardar os carrinhos se pagassem essa taxa. Há cerca de 5 mil carrinhos na Ceagesp. Faça as contas. Uma parte do dinheiro ficava com José Pinheiro, e outra parcela era repassada para as antigas administrações da Ceagesp. José Pinheiro tinha acordo com fiscais corruptos, que perseguiam os proprietários dos carrinhos. Caso os trabalhadores não pagassem a taxa, seus carrinhos eram apreendidos. José Pinheiro revendia esses mesmos carrinhos por R$ 1,5 mil. As cafezeiras também tinham de pagar para deixar o carrinho delas em algum local. Acabamos com isso.

Depósito de carrinhos da Ceagesp | Foto: Paula Leal/Revista Oeste

Também havia denúncias de tráfico de drogas e de prostituição na Ceagesp. Como o senhor enfrentou esses problemas?

Aqui, as informações chegam rápido. Na gíria policial, dizemos o seguinte: “Sabemos quem é o pai da criança”. Chegamos aos responsáveis e dissemos: “É melhor você parar”. Eles entendem o recado e acabam saindo. Quando as forças policiais atuam de maneira correta, os maus elementos acabam se afastando. Havia problemas com o jogo do bicho também. Mas conseguimos resolver essa questão. O único Distrito Policial que apresenta ocorrências de jogo do bicho está na Ceagesp. Antigamente, vendiam-se corpos aqui dentro. Mulheres rifavam o próprio corpo. Também não aceitamos maconheiros no entreposto. Na prática, fomos moralizando a Ceagesp.

O crime organizado participava dessas atividades?

Quem disser que o crime organizado não está envolvido é mentiroso. Os bandidos tentam saber se existe a possibilidade de acordo [suborno]. Conosco, não. Então, eles acabam se afastando. Tínhamos a informação de que o Primeiro Comando da Capital [PCC] estava aqui. Agora, não mais. Mas nada os impede de agir. Por isso, precisamos trabalhar de maneira preventiva. Estabelecemos uma parceria com a Polícia Rodoviária Federal [PRF]. De vez em quando, os oficiais entram na Ceagesp. Eles trazem cães farejadores, averiguam o local e fazem palestras educativas. Antigamente, havia problemas com a administração do ex-governador João Doria. Era muita briga política. Por essa razão, a Polícia Militar tinha receio de entrar na Ceagesp, que pertence à União. Agora, os policiais entram e conseguem nos ajudar. Não podemos descuidar do rebanho, porque o lobo pode aparecer.

O senhor chegou a sofrer ameaças dos criminosos?

Temos informações privilegiadas. Há algum tempo, a Polícia Militar prendeu um traficante de drogas em Osasco [cidade na Grande São Paulo]. Quando estavam vasculhando a casa do criminoso, os policiais encontraram um equipamento do Ceasa. O bandido percebeu que os policiais olharam atenciosamente para o equipamento e decidiu propor um acordo. “Se eu passar uma informação para vocês, serei liberado?” Os policiais disseram que poderiam conversar a respeito. Então, o criminoso disse que iria matar o coronel Mello Araujo. Isso está gravado.

Também havia denúncias sobre irregularidades no estacionamento. Procede?

O estacionamento é da Ceagesp, e as administrações antigas contrataram uma empresa para administrá-lo. Recebemos a informação de que a empresa contratada pertencia a um deputado. Em 2020, o estacionamento cobrava R$ 270 mensais dos clientes. E, ao todo, a Ceagesp recebia apenas R$ 130 mil mensais da receita vinda do estacionamento. Percebemos que esse contrato era nulo, não tinha licitação. Então, decidimos contratar outra empresa, que está conosco até hoje. Em 2022, baixamos a mensalidade para R$ 250. E recebemos cerca de R$ 600 mil por mês.

Qual é a situação financeira da estatal?

Quando assumi a Ceagesp, tínhamos mais de R$ 70 milhões em dívidas. E R$ 50 milhões eram apenas de Imposto Predial e Territorial Urbano [IPTU]. Os comerciantes pagavam corretamente para a administração antiga, mas ela não repassava para a Prefeitura de São Paulo. Nos primeiros meses, precisamos pedir empréstimo para pagar o salário dos funcionários. Aos poucos, fomos arrumando a casa. Em 2021, a Ceagesp fechou com lucro de R$ 27 milhões. Isso nunca havia acontecido. Antigamente, a Ceagesp era um cabide de empregos. Vários deputados tinham cargos de gerência aqui dentro. Há 12 Ceasas no Estado de São Paulo. Quem gerenciava esses locais eram políticos. Aqui, o giro financeiro ultrapassa os R$ 12,5 bilhões anuais. Para quem quer roubar, é um lugar farto. Atualmente, os 12 gerentes dos Ceasas são concursados. A maior parte dos cargos é de carreira. Sou comissionado, fui indicado para estar aqui. Faço parte de um grupo pequeno.

Como funcionam as indicações políticas na Ceagesp?

Há 586 funcionários na Ceagesp. Desse total, 56 podem ser comissionados. Antigamente, isso era dividido entre deputados. Hoje, não temos isso. A maioria dos cargos (65%) é ocupada por funcionários de carreira. Antigamente, havia casos de pessoas receberem sem trabalhar. Também havia uma espécie de “rachadinha”, em que alguns funcionários repassavam parte do salário para os “padrinhos”.

Se o presidente Jair Bolsonaro (PL) não for reeleito, é provável que haja uma mudança na administração da Ceagesp. Vocês têm algum tipo de medida para manter o trabalho que tem sido feito?

Estamos criando um sistema de controle, para evitar que a corrupção volte a ser um problema na Ceagesp. Mexemos no organograma da empresa. Antigamente, quem comprava recebia. Hoje, quem faz a contabilidade é outro setor. Fizemos uma separação dos setores, para evitar a corrupção. Criamos uma controladoria. Também separamos o setor de finanças do de contabilidade. Conseguimos mostrar aos comerciantes, que são responsáveis por pagar o nosso salário, o que é uma administração eficiente.

O senhor esperava que o buraco fosse tão fundo?

Não. Onde você for mexer, encontrará coisas erradas. Também há um esquema violento de corrupção no departamento jurídico. Em outra época, a empresa que trabalhava no estacionamento recebeu do departamento jurídico da Ceagesp algumas isenções fiscais. A empresa ficou de três a quatro meses sem pagar nada. Descobrimos que o gerente do departamento jurídico da Ceagesp também trabalhava como advogado da empresa que administrava o estacionamento. Perdemos uma ação, estimada em R$ 70 milhões, porque perdemos o prazo de resposta. Mas advogado não perde prazo.

O asfaltamento era um problema na Ceagesp. Como está a situação atual?

No ano passado, investimos R$ 3,6 milhões em asfaltamento na Ceagesp. Mesmo com uma dívida enorme, sobrou dinheiro para fazermos investimentos. Agora, abrimos uma licitação e investiremos R$ 7 milhões no asfaltamento das áreas que ainda não foram cobertas anteriormente.

Alguns funcionários disseram que havia até roubo de papelão dentro da Ceagesp. Como isso acontecia?

Um sujeito que tinha um depósito furtava os papelões da Ceagesp e levava para o galpão dele. Chamei-o para uma conversa e entramos em um acordo. Ele e seus 25 funcionários passaram a trabalhar para a Ceagesp. Eles eram informais. A Ceagesp lucra, eles lucram. São R$ 20 mil de lucro por mês. Mais de 10 toneladas de papelão são colhidas diariamente.

A Ceagesp doa muitos alimentos. Como isso funciona?

Antigamente, roubavam até as doações. Por isso, os permissionários pararam de doar. Quando chegamos, conseguimos trazê-los de volta. Nós mostramos para os permissionários que os produtos doados por eles estão indo para o destino correto. Há mais de 5 mil pessoas cadastradas em nosso banco de dados. Semanalmente, 500 indivíduos vêm aqui para receber as doações.

A cidade de Aparecida (SP) recebeu doações, correto?

Durante a pandemia, assisti a uma entrevista em que o prefeito de Aparecida [SP] chorou ao vivo. Ele disse que precisava de comida, porque a cidade não tem indústria. Ela vivia apenas do turismo, e as medidas restritivas acabaram impedindo as visitas. Fui até Aparecida e percebi que a cidade estava sem ninguém. Conversei com o prefeito do município, Luiz Carlos de Siqueira, e tive a ideia de doar alimentos para os moradores de Aparecida. Com o apoio dos permissionários, doamos 300 toneladas de alimentos. A quantidade era tamanha, que tive de pedir o auxílio das Forças Armadas. Quinze caminhões do Exército e quatro caminhões de permissionários levaram frutas, legumes e verduras.

Instalada dentro da Ceagesp, a capelinha abriga a imagem da Virgem Maria, doada pelo prefeito de Aparecida, Luiz Carlos Siqueira | Foto: Edilson Salgueiro/Revista Oeste

Araraquara também recebeu doações da Ceagesp. Como isso foi feito?

O povo estava passando fome. Tudo estava fechado, por ordem do prefeito de Araraquara, Edinho Silva [PT]. Os cidadãos não podiam nem ficar nas praças públicas. Mas a comida não chegava à casa das pessoas. Houve relatos de cidadãos comendo carne de gato. Conversamos com os permissionários e doamos 100 toneladas de alimentos para a cidade. Mais de 25 mil pessoas receberam comida. Ninguém doa tantos alimentos quanto a Ceagesp. 

No início do atual governo, aventou-se a possibilidade de privatização da Ceagesp. Por que isso não ocorreu?

A Ceagesp não sairá da Vila Leopoldina. Havia muitos interesses do ramo imobiliário nessa região. Estamos na melhor localização possível, entre a Marginal Pinheiros e o Rio Tietê. Estamos próximos da Anhanguera e da Bandeirantes. Isso facilita a vida dos feirantes. A cidade inteira é bem abastecida por causa disso. Havia muito lobby a favor da venda do terreno.

O senhor é a favor da privatização da Ceagesp?

Cabe ao presidente Jair Bolsonaro decidir, estamos apenas cumprindo uma missão. A Ceagesp é uma estatal que não dá prejuízo para o governo federal. Não é a União que paga meu salário, são os comerciantes. Há um trabalho social muito forte na Ceagesp. Abastecemos 22 países e 1,5 mil municípios. Talvez, se tivesse nas mãos de pessoas erradas, isso não aconteceria. O Mercado Municipal é um exemplo. Ele foi privatizado e uma empresa chinesa ganhou a licitação. O estacionamento, que custava R$ 8, passou a custar R$ 30. Os caminhoneiros não pagavam nada para descarregar. Agora, pagam R$ 200. A Prefeitura de São Paulo, na época de João Doria [PSDB], deixou a conta dos trabalhadores mais cara. O pessoal do lanche de mortadela está querendo vir para a Ceagesp.

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Edilson Salgueiro, Revista Oeste