No centro da mesa, Geraldo Alckmin e Luiz Inácio Lula da Silva | Foto: Wagner Ferreira Vilas Boas/Agência O Dia/Estadão Conteúdo
A conversão de Alckmin é uma forma de demência ainda não examinada por cientistas
Alguém sabe de algum torcedor famoso do Vasco que, aos 70 anos, virou dirigente do Flamengo? Ou de alguém que fez algo parecido com o Palmeiras e o Corinthians, ou que trocou o Grêmio pelo Inter? Claro que não: uma coisa dessas só acontece com cérebros em pane, e é tão desonrosa quanto a capitulação sem luta. A mesma regra vale para o mundo político brasileiro, sobretudo depois que Lula dividiu o país em “nós” e “eles”. Em São Paulo, por exemplo, a aguda polarização entre petistas e antipetistas proíbe que um grão-tucano quase septuagenário abandone o ninho para adorar a estrela vermelha — ou que ocorra o contrário. Transformar-se em adorador do inimigo que abominou a vida inteira configura uma forma de demência ainda não catalogada por cientistas. É o que vem demonstrando a bizarra metamorfose de Geraldo Alckmin.
Acordos eleitorais, não custa reiterar, existem desde a primeira disputa pelo poder travada por homens das cavernas. Mais: como aliados dispensam compromissos do gênero, essa espécie de acordo só faz sentido quando se destina a unir indivíduos ou grupos divergentes. Mas um acerto entre forças até então desavindas, como ensinou Tancredo Neves, tem de ser feito em torno de princípios — e, portanto, exige concessões recíprocas. A conversão do ex-governador já quase setentão à seita que tem em Lula seu único deus ignorou essas verdades irrevogáveis — além de mandar às favas a ética, a moral e os bons costumes. Foi uma genuflexão abjeta, uma vigarice de ruborizar o mais debochado negociante de votos.
Interessado em amainar a desconfiança de eleitores avessos a fantasias radicais, disposto a seduzir quem hostiliza a teimosa inclusão no programa de governo de seculares ideias de jerico, o ex-presidiário animou-se com a sugestão apresentada por Márcio França e Gabriel Chalita: completar a chapa com um candidato a vice-presidente sem quaisquer vestígios de esquerdismo no currículo. Católico praticante, Geraldo Alckmin consolidara a imagem de antipetista, democrata, liberal, moderado, amante da cautela e de entendimentos em voz baixa. E os tiroteios retóricos do passado? Na campanha presidencial de 2006, por exemplo, Alckmin acusou o adversário de “corrupto” e “chefe da roubalheira”. Lula revidou com palavras de igual calibre. Nada de mais, disseram em coro os dois pistoleiros. Eleição é assim mesmo.
O vice escolhido para roubar eleitores tucanos vai ficando parecido com veteranos petistas
Para provar que as ofensas haviam sido revogadas, o chefão do PT ofereceu ao paulista de Pindamonhangaba a vaga de vice e ordenou aos devotos que chamassem de “companheiro” o adversário que a seita apelidara de “Picolé de Chuchu”. Sete anos menos idoso que Lula, Alckmin contentou-se com a esperança biológica: da mesma forma que ganhou o cargo de governador com a morte de Mário Covas, em 2001, por que não sonhar com outra ajuda da mão do destino, agora em escala federal? O acordo foi fechado sem que se alterasse uma única e escassa vírgula do programa do PT. Lula nada perdeu. Continua o mesmo. Alckmin perdeu o respeito dos que nele enxergavam uma opção antipetista. Perdeu a vergonha. E tornou-se outro, infinitamente pior que o anterior.
“O mais estranho é que ele está feliz como pinto no lixo”, contou-me um amigo depois de jantar com o Alckmin modelo 22. “Você precisa ouvi-lo falar de Lula. É um elogio atrás do outro. É pura admiração, coisa de tiete.” O tucano que não engolia o PT elegeu-se governador de São Paulo três vezes. Sempre derrotando candidatos da seita, tornou-se o político que por mais tempo governou o maior Estado brasileiro. Hoje estafeta de Lula, é pouco provável que conseguisse uma vaga na Câmara de Vereadores da cidade onde nasceu. O vice escolhido para roubar eleitores tucanos vai ficando parecido com veteranos petistas.
Desde a formalização do noivado, o agora integrante do Partido Socialista Brasileiro diz e faz o oposto do que disse e fez desde 2001, quando se instalou no Palácio dos Bandeirantes. Vivia recitando que foi um dos fundadores do PSDB. Agora simpatiza com velharias socialistas. No primeiro discurso ao lado de Lula, qualificou de “maior líder da História do Brasil” o homem que desde 2002 acusava de larápio. Há menos de quatro anos, berrava na campanha eleitoral que era preciso impedir que o delinquente condenado pela Justiça voltasse à cena do crime. No momento, sonha com uma sala no palácio que funcionou como sede da quadrilha. Num recente sarau pluripartidário, fingiu com movimentos labiais que sabia cantar o hino comunista cujos primeiros versos exortam os desvalidos de todo o mundo à ação armada: “De pé, ó vítimas da fome!/De pé, famélicos da terra!”.
Até 2018, reiterava em todos os discursos que o PT não lança candidatos; lança ameaças. Hoje faz o que pode para concretizar o perigo. Declarava-se inconformado com a agressão sofrida por Mário Covas em 1998, quando já lutava contra o câncer que, três anos mais tarde, transformaria em governador um vice ainda imerso no semianonimato. “Mário Covas sempre foi meu mentor e modelo”, afirmou incontáveis vezes um Alckmin que já não há. Covas não escondia o que pensava. O que estaria ouvindo o discípulo de araque se o mestre tivesse vivido para vê-lo no papel de puxadinho do bordel inimigo?
A patética façanha desta semana garantiu a Alckmin, previsivelmente, alguns centímetros nas primeiras páginas e um punhado de segundos nos telejornais: apareceu numa cidade do interior paulista com um boné do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra — o mesmo MST que, nos tempos de tucano, acusava de agitar os campos com invasões criminosas e insolentes pontapés no direito de propriedade. O antigo Alckmin aprendeu faz tempo que um golpe do destino pode instalar no governo de São Paulo uma cabeça despovoada de ideias. O Alckmin companheiro de João Pedro Stedile parece achar que nem precisa usar o crânio despovoado de cabelos para virar vice de Lula. Basta cobri-lo com um boné de terrorista e aprender com José Dirceu como é exatamente a pose do guerreiro do povo brasileiro — em guerra contra o imperialismo ianque. No Brasil, também para o ridículo não existem limites.
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Revista Oeste